Sacramentum Caritatis

02-11-2011 11:19

 

Sacramentum Caritatis
Exortação Apostólica Pós-sinodal Sacramentum Caritatis de Bento XVI ao episcopado, ao
clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre a eucaristia, fonte e ápice da vida e da
missão da Igreja.
INTRODUÇÃO
1. SACRAMENTO DA CARIDADE 1, a Santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz
de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento
admirável, manifesta-se o amor «maior»: o amor que leva a «dar a vida pelos amigos» (Jo
15,13). De facto, Jesus «amou-os até ao fim» (Jo 13,1). Com estas palavras, o evangelista
introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou: na vigília da sua morte por nós na cruz,
pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus discípulos. Do mesmo modo, no sacramento
eucarístico, Jesus continua a amar-nos «até ao fim», até ao dom do seu Corpo e do seu Sangue.
Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do
Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério
eucarístico!
O alimento da Verdade
2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança
de Deus (Gn 1,27), fazendo-se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus
torna-se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade
nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo 8,36), Cristo faz-se alimento de Verdade para nós.
Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em evidência como o
homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra algo que o atrai e nele
suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em última análise mover o
homem no seu íntimo, o santo bispo exclama: «Que pode a alma desejar mais ardentemente do
que a verdade?» 2 De facto, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimível da verdade
última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, «Caminho, Verdade e Vida» (Jo 14,6), dirige-se ao
coração anelante do homem que se sente peregrino e sedento, ao coração que suspira pela fonte
da vida, ao coração mendigo da Verdade. Com efeito, Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que
atrai a si o mundo. «Jesus é a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua
orientação, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se
a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma».3 No sacramento da
Eucaristia, Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de
Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso, a
Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a
todos, em tempo propício e fora dele (opportune, importune: cf. 2Tm 4,2), que Deus é Amor.4
Exactamente porque Cristo se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem,
convidando-o a acolher livremente o dom de Deus.
O desenvolvimento do rito eucarístico
3. Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela acção do
Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão o desenvolvimento ordenado no tempo das formas
rituais em que fazemos memória do acontecimento da nossa salvação. Desde as múltiplas
formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente,
até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de
São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da história
da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua vida e missão, resplandece no
rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo
dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005, no Vaticano, elevou um profundo
agradecimento a Deus por esta história, reconhecendo nela a orientação activa do Espírito
Santo. De modo particular, os padres sinodais reconheceram e reafirmaram o benéfico influxo
que teve, na vida da Igreja, a reforma litúrgica posta em prática a partir do Concílio Ecuménico
Vaticano II.5 O Sínodo dos Bispos pôde avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da
Assembleia conciliar; inúmeros foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns
abusos assinalados não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica,
que contém riquezas ainda não plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as
mudanças queridas pelo Concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico
do próprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.6
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia
4. Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia
com o que sucedeu durante os últimos anos na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no
Grande Jubileu do ano 2000, com o qual o meu amado predecessor, o servo de Deus João Paulo
II, introduziu a Igreja no terceiro milénio cristão; o Ano Jubilar teve, sem dúvida, uma
caracterização intensamente eucarística. Depois, não se pode esquecer que o Sínodo dos Bispos
foi precedido e, em certo sentido, preparado também pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com
grande clarividência por João Paulo II para toda a Igreja; teve início com o Congresso
Eucarístico Internacional em Guadalajara, no mês de Outubro de 2004, e terminou a 23 de
Outubro de 2005, no final da XI Assembleia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se
distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski, os
sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o
religioso capuchinho Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos propostos por João Paulo II, na
Carta Apostólica Mane nobiscum Domine 7, e às preciosas sugestões da Congregação para o
Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,8 numerosas foram as iniciativas que as dioceses e
as diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé
eucarística, para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para
encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os necessitados. Por
último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica do meu venerado predecessor, a
Ecclesia de Eucharistia,9 deixando-nos através dela uma segura referência do Magistério quanto
à doutrina eucarística e um derradeiro testemunho do lugar central que este sacramento divino
ocupava na sua vida.
Finalidade do documento
5. Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objectivo recolher a multiforme riqueza de
reflexões e propostas surgidas na recente Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos – a
começar dos Lineamenta até às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, as
Relationes ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores e
delegados fraternos –, com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho,
tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarísticos. Consciente do vasto
património doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos séculos à volta da Eucaristia,10
neste documento, desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,11 que o
povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a acção litúrgica e o novo culto
espiritual que deriva da Eucaristia, enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva,
pretendo colocar esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica – Deus caritas est –,
na qual várias vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o
amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: «O Deus encarnado atrai-nos
todos a si. Assim se compreende por que motivo o termo agape se tenha tornado também um
nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua acção
em nós e através de nós».12
I PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO
«A obra de Deus consiste em acreditar naquele que Ele enviou» (Jo 6,29)
A fé eucarística da Igreja
6. «Mistério da fé!»: com esta exclamação, pronunciada logo a seguir às palavras da
consagração, o sacerdote proclama o mistério celebrado, e manifesta o seu enlevo diante da
conversão substancial do pão e do vinho no Corpo e no Sangue do Senhor Jesus, realidade esta
que ultrapassa toda a compreensão humana. Com efeito, a Eucaristia é por excelência «mistério
da fé»: «É o resumo e a súmula da nossa fé».13 A fé da Igreja é essencialmente fé eucarística e
alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos são dois aspectos
complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anúncio da Palavra de Deus, a fé é alimentada e
cresce no encontro com a graça do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: «A fé
exprime-se no rito e este revigora e fortifica a fé».14 Por isso, o sacramento do altar está sempre
no centro da vida eclesial; «graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo!» 15 Quanto
mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na
vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos.
Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à
redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo.
SANTÍSSIMA TRINDADE E EUCARISTIA
O Pão descido do Céu
7. O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No
diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito:
«Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que
acredita nele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo
para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo 3,16-17). Estas palavras
revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá «alguma coisa», mas dá-se a
si mesmo; entrega o seu Corpo e derrama o seu Sangue. Deste modo, dá a totalidade da sua
própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou
por nós. Noutro passo do Evangelho, depois de Jesus ter saciado a multidão pela multiplicação
dos pães e dos peixes, ouvimo-lo dizer aos interlocutores que vieram atrás dele até à sinagoga
de Cafarnaum: «Meu Pai é que vos dá o verdadeiro Pão que vem do Céu. O Pão de Deus é o
que desce do Céu para dar a vida ao mundo» (Jo 6,32-33), acabando por identificar-se Ele
mesmo – a sua própria carne e o seu próprio sangue – com aquele pão: «Eu sou o Pão vivo que
desceu do Céu. Quem comer deste Pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha
carne que Eu darei pela vida do mundo» (Jo 6,51). Assim, Jesus manifesta-se como o Pão da
vida que o Pai eterno dá aos homens.
Dom gratuito da Santíssima Trindade
8. Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ef 1,9-10;
3,8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em si mesmo é amor (1Jo 4,7-8), envolvese
plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas aparências Cristo se
nos dá, na ceia pascal (Lc 22,14-20; 1Cor 11,23-26), é toda a vida divina que nos alcança e se
comunica a nós na forma do sacramento: Deus é comunhão perfeita de amor entre o Pai, o Filho
e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o sopro
vital de Deus (Gn 2,7). Mas, é em Cristo morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo,
dado sem medida (Jo 3,34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.16 Assim,
Jesus Cristo, que «pelo Espírito eterno se ofereceu a Deus como vítima sem mancha» (Heb
9,14), no dom eucarístico comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom
absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e
qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência. O «mistério da
fé» é mistério de amor trinitário, no qual, por graça, somos chamados a participar. Por isso,
também nós devemos exclamar com Santo Agostinho: «Se vês a caridade, vês a Trindade».17
EUCARISTIA: JESUS, VERDADEIRO CORDEIRO IMOLADO
A nova e eterna Aliança, no sangue do Cordeiro
9. A missão, que trouxe Jesus entre nós, atinge o seu cumprimento no mistério pascal. Do alto
da cruz, donde atrai todos a si (Jo 12,32), antes de «entregar o Espírito», Jesus diz: «Tudo está
consumado» (Jo 19,30). No mistério da sua obediência até à morte, e morte de cruz (Fl 2,8),
cumpriu-se a nova e eterna Aliança. Na sua carne crucificada, a liberdade de Deus e a liberdade
do homem juntaram-se definitivamente num pacto indissolúvel, válido para sempre. Também o
pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de Deus (Heb 7,27; 1Jo 2,2;
4,10). Como já tive ocasião de afirmar, «na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de
Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o homem e salvá-lo – o amor na
sua forma mais radical».18 No mistério pascal, realizou-se verdadeiramente a nossa libertação
do mal e da morte. Na instituição da Eucaristia, o próprio Jesus falara da «nova e eterna
Aliança», estipulada no seu sangue derramado (Mt 26,28; Mc 14,24; Lc 22,20). Esta finalidade
última da sua missão era bem evidente já no início da sua vida pública; de facto, nas margens do
Jordão, quando João Baptista vê Jesus vir ter com ele, exclama: «Eis o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo» (Jo 1,29). É significativo que a mesma expressão apareça, sempre que
celebramos a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: «Felizes os
convidados para a Ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.» Jesus
é o verdadeiro Cordeiro pascal, que se ofereceu espontaneamente a si mesmo em sacrifício por
nós, realizando assim a nova e eterna Aliança. A Eucaristia contém nela esta novidade radical,
que nos é oferecida em cada celebração.19
A instituição da Eucaristia
10. Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição da Eucaristia, durante a Última Ceia.
O facto teve lugar no âmbito duma ceia ritual, que constituía o memorial do acontecimento
fundador do povo de Israel: a libertação da escravidão do Egipto. Esta ceia ritual, associada com
a imolação dos cordeiros (Ex 12,1-28.43-51), era memória do passado, mas ao mesmo tempo
também memória profética, ou seja, anúncio duma libertação futura; de facto, o povo
experimentara que aquela libertação não tinha sido definitiva, pois a sua história ainda estava
demasiadamente marcada pela escravidão e pelo pecado. O memorial da antiga libertação abriase,
assim, à súplica e ao anseio por uma salvação mais profunda, radical, universal e definitiva.
É neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na oração de louvor – a Berakah –,
Ele dá graças ao Pai não só pelos grandes acontecimentos da história passada, mas também pela
sua própria «exaltação». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o
sacrifício da cruz e a vitória da ressurreição; ao mesmo tempo, revela-se como o verdadeiro
Cordeiro imolado, previsto no desígnio do Pai, desde a fundação do mundo, como se lê na I
Carta de Pedro (1,18-20). Ao colocar o dom de si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o
sentido salvífico da sua morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade
renovadora da história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra como
aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, acto supremo de amor e
libertação definitiva da humanidade do mal.
A figura deu lugar à Verdade
11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no âmbito da antiga ceia
sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir. Como
justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades
futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou
definitivamente superado, mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento da
verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo às figuras (dat figuris terminum).20 Com a sua
ordem «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22,19; 1Cor 11,25), pede-nos para corresponder ao
seu dom e representá-lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim
dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom, desenvolvendo,
sob a orientação do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De facto, o memorial do
seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na
Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão. Assim, Jesus deixou-nos a missão de
entrar na sua «hora»: «A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. Não é só de modo
estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua
doação».21 Ele «arrasta-nos para dentro de si».22 A conversão substancial do pão e do vinho no
seu Corpo e no seu Sangue insere na criação o princípio duma mudança radical, como uma
espécie de «fissão nuclear» (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós),
verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de
transformação da realidade, cujo fim último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar
àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,28).
O ESPÍRITO SANTO E A EUCARISTIA
Jesus e o Espírito Santo
12. Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor nos ofereceu os elementos
essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico, dia
após dia, em memória dele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu Esposo na
história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este grande
mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve
no tempo e no espaço.23 A propósito, é necessário despertar em nós a consciência da função
decisiva que exerce o Espírito Santo no desenvolvimento da forma litúrgica e no
aprofundamento dos mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido aos crentes,24
activo já na criação (Gn 1,2), está presente, em plenitude, na vida inteira do Verbo encarnado:
com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (Mt
1,18; Lc 1,35); no início da sua missão pública, nas margens do Jordão, vê-o descer sobre si em
forma de pomba (Mt 3,16 e par.); neste mesmo Espírito, age, fala e exulta (Lc 10,21); e é nele
que Jesus pode oferecer-se a si mesmo (Heb 9,14). No chamado «discurso de despedida»,
referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua vida no mistério pascal com o
dom do Espírito aos seus (Jo 16,7). Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da
Paixão, pode derramar o Espírito (Jo 20,22), tornando os seus discípulos participantes da mesma
missão dele (Jo 20,21). Em seguida, será o Espírito que ensina aos discípulos todas as coisas,
recordando-lhes tudo o que Cristo tinha dito (Jo 14,26), porque compete a Ele, enquanto
Espírito da verdade (Jo 15,26), introduzir os discípulos na verdade total (Jo 16,13). Segundo
narram os Actos, o Espírito desce sobre os Apóstolos reunidos em oração com Maria, no dia de
Pentecostes (2,1-4), e impele-os para a missão de anunciar a Boa-Nova a todos os povos.
Portanto, é em virtude da acção do Espírito que o próprio Cristo continua presente e activo na
sua Igreja, a partir do seu centro vital que é a Eucaristia.
Espírito Santo e celebração eucarística
13. Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem o Espírito Santo na celebração
eucarística e, de modo particular, no que se refere à transubstanciação. É fácil de comprovar a
consciência disto, mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São Cirilo de Jerusalém
recorda que «invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Espírito sobre as
oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em Corpo de Cristo e o vinho em
Sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca é santificado e transformado totalmente».25
Também São João Crisóstomo assinala que o sacerdote invoca o Espírito Santo, quando celebra
o Sacrifício: 26 à semelhança de Elias, o ministro atrai o Espírito Santo para que, «descendo a
graça sobre a vítima, se incendeiem por meio dela as almas de todos».27 É extremamente
necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais clara da riqueza da anáfora:
esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese,
que é invocação ao Pai para que faça descer o dom do Espírito, a fim de que o pão e o vinho se
tornarem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, e para que «a comunidade inteira se torne cada
vez mais Corpo de Cristo».28 O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do
vinho colocados sobre o altar, é o mesmo que reúne os fiéis «num só Corpo», tornando-os uma
oferta espiritual agradável ao Pai.29
EUCARISTIA E IGREJA
Eucaristia, princípio causal da Igreja
14. Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os fiéis na sua própria «hora»;
mostra-nos assim a ligação que quis, entre Ele mesmo e nós, entre a sua pessoa e a Igreja. De
facto, o próprio Cristo, no sacrifício da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo. Os
Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há entre a origem de Eva do
lado de Adão adormecido (Gn 2,21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo
mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado – narra João – saiu sangue e água (Jo
19,34), símbolo dos sacramentos.30 Um olhar contemplativo para «Aquele que trespassaram»
(Jo 19,37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a
Igreja. Com efeito, esta «vive da Eucaristia».31 Uma vez que nela se torna presente o sacrifício
redentor de Cristo, temos de reconhecer, antes de mais, que «existe um influxo causal da
Eucaristia nas próprias origens da Igreja».32 A Eucaristia é Cristo que se dá a nós, edificandonos
continuamente como seu Corpo. Portanto, na sugestiva circularidade, entre a Eucaristia que
edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia,33 a causalidade primária está expressa na
primeira fórmula: a Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia,
precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela, no sacrifício da Cruz. A
possibilidade que a Igreja tem de «fazer» a Eucaristia está radicada totalmente na doação que
Jesus lhe fez de si mesmo. Também este aspecto nos persuade de quão verdadeira seja a frase de
São João: «Ele amou-nos primeiro» (1Jo 4,19). Deste modo, também nós confessamos, em cada
celebração, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da
Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do
amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro.
Eucaristia e comunhão eclesial
15. A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã
designava com as mesmas palavras – corpus Christi – o corpo nascido da Virgem Maria, o
corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo.34 Bem atestado na tradição, este dado faz crescer
em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-se a si mesmo em
sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja.
É significativo o modo como a Oração Eucarística II, ao invocar o Paráclito, formula a prece
pela unidade da Igreja: «… participando no Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo
Espírito Santo, num só Corpo». Esta passagem ajuda a compreender como a eficácia (res) do
sacramento eucarístico seja a unidade dos fiéis na comunhão eclesial. Assim, a Eucaristia
aparece na raiz da Igreja como mistério de comunhão.35
O servo de Deus, João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, tinha já chamado a
atenção para a relação, entre Eucaristia e communio: falou do memorial de Cristo como sendo a
«suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja».36 A unidade da comunhão
eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se no acto eucarístico que
as une e diferencia em Igrejas particulares, «in quibus et ex quibus una et unica Ecclesia
catholica existit – nas quais e pelas quais existe a Igreja Católica, una e única».37 É
precisamente a realidade da única Eucaristia, celebrada em cada diocese ao redor do respectivo
Bispo, que nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex
Ecclesia. De facto, «a unicidade e indivisibilidade do Corpo eucarístico do Senhor implicam a
unicidade do seu Corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do centro eucarístico surge a
necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair
pelos braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção no seu Corpo, único e indiviso».38 Por
este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua Igreja, isto é, na Igreja de
Cristo. Nesta perspectiva eucarística, adequadamente entendida, a comunhão eclesial revela-se
realidade católica por sua natureza.39 O facto de sublinhar esta raiz eucarística da comunhão
eclesial pode contribuir eficazmente também para o diálogo ecuménico com as Igrejas e com as
Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade, a
Eucaristia estabelece objectivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as
Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a natureza do mistério da
Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevância dada ao carácter eclesial da Eucaristia pode tornar-se
elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da Reforma.40
EUCARISTIA E SACRAMENTOS
Sacramentalidade da Igreja
16. O Concílio Vaticano II lembrou que «os restantes sacramentos, assim como todos os
ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a
ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da
Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o Pão vivo que dá aos homens a vida, mediante
a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são eles convidados e levados a
oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas».41 Esta
relação íntima da Eucaristia com os demais sacramentos e com a existência cristã compreendese,
na sua raiz, quando se contempla o mistério da própria Igreja como sacramento.42 A este
respeito, o referido Concílio afirmou que «a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou
sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano».43
Ela, enquanto «povo – como diz São Cipriano – reunido na unidade do Pai e do Filho e do
Espírito Santo»,44 é sacramento da comunhão trinitária.
O facto de a Igreja ser «universal sacramento da salvação»45 mostra que a «economia»
sacramental determina, em última análise, o modo como Jesus Cristo único Salvador, por meio
do Espírito, alcança a nossa vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja recebe-se e
simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de Deus influencia
concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida, redimida por Cristo, se torne culto
agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos
padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relação dos diversos sacramentos com o
mistério eucarístico.
EUCARISTIA E INICIAÇÃO CRISTÃ
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã
17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, temos de
concluir, antes de mais, que o caminho de iniciação cristã tem como ponto de referência tornar
possível o acesso a tal sacramento. A propósito, devemos interrogarmo-nos – como sugeriram
os padres sinodais – se as nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do vínculo estreito
que há entre Baptismo, Confirmação e Eucaristia; 46 de facto, é preciso não esquecer jamais
que somos baptizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de
favorecer, na acção pastoral, uma compreensão mais unitária do percurso de iniciação cristã. O
sacramento do Baptismo, pelo qual somos configurados a Cristo,47 incorporados na Igreja e
feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os sacramentos; através dele, somos
inseridos no único Corpo de Cristo (1Cor 12,13), povo sacerdotal. Mas é a participação no
sacrifício eucarístico que aperfeiçoa, em nós, o que recebemos no Baptismo. Também os dons
do Espírito são concedidos para a edificação do Corpo de Cristo (1Cor 12) e o crescimento do
testemunho evangélico no mundo.48 Portanto, a santíssima Eucaristia leva à plenitude a
iniciação cristã e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental.49
A ordem dos sacramentos da iniciação
18. A este respeito, é necessário prestar atenção ao tema da ordem dos sacramentos da iniciação.
Na Igreja, há tradições diferentes; esta diversidade é patente nos costumes eclesiais do Oriente
50 e na prática ocidental para a iniciação dos adultos,51 se comparada com a das crianças.52
Contudo, tais diferenças não são propriamente de ordem dogmática, mas de carácter pastoral.
Em concreto, é necessário verificar qual seja a prática que melhor pode, efectivamente, ajudar
os fiéis a colocarem no centro o sacramento da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a
iniciação; em estreita colaboração com os Dicastérios competentes da Cúria Romana, as
Conferências Episcopais verifiquem a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o
cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até
chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja
capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo (1Ped 3,15).
Iniciação, comunidade eclesial e família
19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã é caminho de conversão que há-de
ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referimento à comunidade eclesial, quer
quando é o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira
evangelização e em muitas zonas secularizadas, quer quando são os pais a pedir os sacramentos
para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a relação entre
iniciação cristã e família; na acção pastoral, sempre se deve associar a família cristã ao itinerário
de iniciação. Receber o Baptismo, a Confirmação e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia
são momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas também para toda a sua
família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela comunidade eclesial em suas
diversas componentes.53 Quero sublinhar aqui a relevância da Primeira Comunhão; para
inúmeros fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na memória como o primeiro momento
em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importância do encontro pessoal com
Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar adequadamente esta ocasião tão significativa.
II
EUCARISTIA E SACRAMENTO DA RECONCILIAÇÃO
Sua ligação intrínseca
20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à Eucaristia leva a apreciar cada vez
mais também o sacramento da Reconciliação.54 Por causa da ligação entre ambos os
sacramentos, uma catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser separada da
proposta dum caminho penitencial (1Cor 11,27-29). Constatamos – é certo – que, no nosso
tempo, os fiéis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,55
favorecendo um estado de espírito superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na
graça de Deus para se aproximar dignamente da comunhão sacramental.56 Na realidade, a perda
da consciência do pecado engloba sempre também uma certa superficialidade na compreensão
do próprio amor de Deus. É muito útil para os fiéis recordar-lhes os elementos que, no rito da
Santa Missa, explicitam a consciência do próprio pecado e, simultaneamente, da misericórdia de
Deus.57 Além disso, a relação entre a Eucaristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado
nunca é uma realidade exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio
da comunhão eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo Baptismo. Por isso, como diziam
os Padres da Igreja, a Reconciliação é um baptismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),58
sublinhando assim que o resultado do caminho de conversão é também o restabelecimento da
plena comunhão eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.59
Alguns cuidados pastorais
21. O Sínodo lembrou que é dever pastoral do Bispo promover na sua diocese uma decisiva
recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer, entre os fiéis, a
confissão frequente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e
competência à administração do sacramento da Reconciliação.60 A propósito, procure-se que,
nas nossas igrejas, os confessionários sejam bem visíveis e expressivos do significado deste
sacramento. Peço aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebração do sacramento da
Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral exclusivamente aos casos previstos,61
permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a pessoal.62 Vista a necessidade de
descobrir novamente o perdão sacramental, haja em todas as dioceses o Penitenciário.63 Por
último, pode servir de válida ajuda para a nova tomada de consciência desta relação, entre a
Eucaristia e a Reconciliação, uma prática equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a
favor de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtém-se «a remissão, perante Deus, da pena
temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada».64 O uso das indulgências ajuda-nos a
compreender que não somos capazes, só com as nossas forças, de reparar o mal cometido e que
os pecados de cada um causam dano a toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência,
implicando a doutrina dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos,
mostra-nos «quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida
sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros».65 Dado que a forma própria da
indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da Confissão e da Comunhão
sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente os fiéis no caminho da conversão e na
descoberta da centralidade da Eucaristia na vida cristã.
III
EUCARISTIA E UNÇÃO DOS ENFERMOS
22. Jesus não se limitou a enviar os seus discípulos a curar os doentes (Mt 10,8; Lc 9,2; 10,9),
mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos Enfermos.66 A Carta de
Tiago testemunha a presença deste gesto sacramental já na primitiva comunidade cristã (5,14-
16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em
amor, a Unção dos Enfermos, por seu lado, associa o doente à oferta que Cristo fez de si mesmo
pela salvação de todos, de tal modo que possa também ele, no mistério da comunhão dos santos,
participar na redenção do mundo. A relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais
clara quando se agrava a doença: «Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além
da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático».67 Nesta passagem para o Pai, a comunhão
no Corpo e Sangue de Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição:
«Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no
último dia» (Jo 6,54). Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao doente a plenitude do
mistério pascal, é preciso assegurar a sua administração.68 A atenção e o cuidado pastoral por
aqueles que se encontram doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a
comunidade, sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos
(Mt 25,40).
IV
EUCARISTIA E SACRAMENTO DA ORDEM
Na pessoa de Cristo cabeça
23. O vínculo intrínseco, entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem, deduz-se das próprias
palavras de Jesus no Cenáculo: «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22,19). De facto, na
vigília da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da Nova
Aliança. Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5,5-10),
vítima de expiação (1Jo 2,2; 4,10) que se oferece a si mesma no altar da cruz. Ninguém pode
dizer «isto é o meu Corpo» e «este é o cálice do meu Sangue» senão em nome e na pessoa de
Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo dos Bispos já se
ocupara, noutras assembleias, do sacerdócio ordenado, tanto no que diz respeito à identidade do
ministério,69 como à formação dos candidatos.70 Na presente circunstância, importa-me, à luz
do diálogo realizado no âmbito da última assembleia sinodal, sublinhar alguns valores que têm a
ver com a relação entre o sacramento eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário
reafirmar que a ligação entre a Ordem sacra e a Eucaristia é visível precisamente na Missa que o
bispo ou o presbítero preside, na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis).
A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal condição indispensável para a celebração
válida da Eucaristia.71 De facto, «no serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo
que está presente à sua Igreja, como Cabeça do seu Corpo, pastor do seu rebanho, Sumo
Sacerdote do sacrifício redentor».72 Certamente o ministro ordenado «age também em nome de
toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e, sobretudo, quando oferece o
sacrifício eucarístico».73 Por isso, é necessário que os sacerdotes tenham consciência de que,
em todo o seu ministério, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas
opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa de se colocarem a
si mesmos como protagonistas da acção litúrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote é servo
e deve continuamente empenhar-se por ser sinal que, como dócil instrumento nas mãos de
Cristo, aponta para Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote
conduz a acção litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente,
evitando tudo o que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo,
pois, ao clero que não cesse de aprofundar a consciência do seu ministério eucarístico como um
serviço humilde a Cristo e à sua Igreja. O sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço
de amor (amoris officium),74 é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo
10,14-15).
Eucaristia e celibato sacerdotal
24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio ministerial requer, através da
ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição oriental
diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente
considerado uma riqueza inestimável e confirmado também pela prática oriental de escolher os
bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indício da grande honra em que ela tem a
opção do celibato, feita por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do sacerdote
encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si
mesmo pelo Reino de Deus.75 O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua
missão até ao sacrifício da cruz, no estado de virgindade, constitui o ponto seguro de referência
para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente
compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma
especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é
esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. Em
sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio Vaticano II 76 e com os Sumos
Pontífices 77 meus predecessores, corroboro a beleza e a importância duma vida sacerdotal
vivida no celibato como sinal expressivo de dedicação total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao
Reino de Deus, e, consequentemente, confirmo a sua obrigatoriedade para a tradição latina. O
celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a
Igreja e para a própria sociedade.
Escassez de clero e pastoral vocacional
25. A propósito da ligação entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Sínodo deteve-se
sobre a dolorosa situação que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braços com a escassez
de sacerdotes. Isto acontece não só em algumas zonas de primeira evangelização, mas também
em muitos países de longa tradição cristã. Para a solução do problema contribui certamente uma
distribuição mais equitativa do clero; mas, para isso, é preciso um trabalho de sensibilização
capilar. Os bispos empenhem, nas necessidades pastorais, os institutos de vida consagrada e as
novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo carisma, e solicitem todos os membros do
clero a uma disponibilidade maior para irem servir a Igreja nos lugares onde houver
necessidade, sem olhar a sacrifícios.78 Além disso, o Sínodo debruçou-se também sobre os
cuidados pastorais a ter principalmente com os jovens para favorecer a sua abertura interior à
vocação sacerdotal. A solução para tal carestia não se pode encontrar em meros estratagemas
pragmáticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensíveis preocupações funcionais
devido à falta de clero, acabem por não realizar um adequado discernimento vocacional,
admitindo à formação específica e à ordenação candidatos que não possuam as características
necessárias para o serviço sacerdotal.79 Um clero insuficientemente formado e admitido à
ordenação sem o necessário discernimento dificilmente poderá oferecer um testemunho capaz
de suscitar noutros o desejo de generosa correspondência à vocação de Cristo. Na realidade, a
pastoral vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos.80
Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar, está incluída também a obra de sensibilização
das famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação
sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem
disponíveis à vontade de Deus! Em resumo, é preciso sobretudo ter a coragem de propor aos
jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto.
Gratidão e esperança
26. Enfim, é necessário ter maior fé e esperança na iniciativa divina. Apesar da escassez de
clero que se verifica em algumas regiões, não deve esmorecer jamais a confiança de que Cristo
continua a suscitar homens que não hesitam em abandonar qualquer outra ocupação para se
dedicarem totalmente à celebração dos mistérios sagrados, à pregação do Evangelho e ao
ministério pastoral. Nesta ocasião, desejo dar voz à gratidão da Igreja inteira por todos os bispos
e presbíteros que cumprem, com fiel dedicação e empenho, a própria missão. Naturalmente, este
agradecimento da Igreja estende-se também aos diáconos, a quem são impostas as mãos «não
em ordem ao sacerdócio mas ao ministério».81 Como recomendou a Assembleia do Sínodo,
dirijo um obrigado especial aos presbíteros fidei donum que edificam a comunidade, com
competência e generosa dedicação, anunciando-lhe a Palavra de Deus e repartindo o pão da
vida, sem pouparem as suas energias ao serviço da missão da Igreja.82 Por fim, é preciso
agradecer a Deus pelos numerosos sacerdotes que tiveram de sofrer até ao sacrifício da vida por
servir a Cristo. Neles se manifesta, com a eloquência dos factos, o que significa ser sacerdote a
fundo; trata-se de comoventes testemunhos que poderão inspirar muitos jovens a seguirem por
sua vez a Cristo e gastarem a sua vida pelos outros, encontrando precisamente assim a vida
verdadeira.
V.
EUCARISTIA E MATRIMÓNIO
Eucaristia, sacramento esponsal
27. A Eucaristia, sacramento da caridade, apresenta uma relação particular com o amor do
homem e da mulher, unidos em matrimónio. Aprofundar tal relação é uma necessidade do nosso
tempo.83 Várias vezes o papa João Paulo II teve ocasião de afirmar o carácter esponsal da
Eucaristia e a sua relação peculiar com o sacramento do matrimónio: «A Eucaristia é o
sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa».84 Aliás, «toda a vida
cristã tem a marca do amor esponsal, entre Cristo e a Igreja. Já o Baptismo, entrada no povo de
Deus, é um mistério nupcial; é, por assim dizer, o banho de núpcias que precede o banquete das
bodas, a Eucaristia».85 Esta corrobora de forma inexaurível a unidade e o amor indissolúveis de
cada matrimónio cristão. Neste, em virtude do sacramento, o vínculo conjugal está
intrinsecamente ligado com a união eucarística entre Cristo esposo e a Igreja esposa (Ef 5,31-
32). O consentimento recíproco, que o marido e a esposa trocam entre si em Cristo constituindoos
em comunidade de vida e de amor, tem também uma dimensão eucarística; com efeito, na
teologia paulina, o amor esponsal é sinal sacramental do amor de Cristo pela sua Igreja, um
amor que tem o seu ponto culminante na cruz, expressão das suas «núpcias» com a humanidade
e, ao mesmo tempo, origem e centro da Eucaristia. Por isso, a Igreja manifesta uma particular
solidariedade espiritual a todos aqueles que fundaram a sua família sobre o sacramento do
Matrimónio.86 A família – igreja doméstica 87 – é um âmbito primário da vida da Igreja,
especialmente pelo papel decisivo que tem na educação cristã dos filhos.88 Neste contexto, o
Sínodo recomendou também o reconhecimento da missão singular que tem a mulher na família
e na sociedade, missão esta que há-de ser protegida, salvaguardada e promovida.89 A sua
dimensão de esposa e mãe constitui uma realidade imprescindível, que nunca deve ser
desprezada.
Eucaristia e unidade do Matrimónio
28. É precisamente à luz desta relação intrínseca entre Matrimónio, família e Eucaristia que se
podem considerar alguns problemas pastorais. O vínculo fiel, indissolúvel e exclusivo que une
Cristo e a Igreja e tem expressão sacramental na Eucaristia, está de harmonia com o dado
antropológico primordial segundo o qual o homem deve unir-se de modo definitivo com uma só
mulher, e vice-versa (Gn 2,24; Mt 19,5). Nesta linha de pensamento, o Sínodo dos Bispos
debruçou-se sobre a prática pastoral que deve ser seguida com as pessoas originárias de culturas
onde é praticada a poligamia, que recebem o anúncio do Evangelho: quantos vivem em tal
situação e se abrem à fé cristã devem ser ajudados a integrar o seu projecto humano na novidade
radical de Cristo; no percurso do catecumenado, Cristo alcança-os na sua condição específica e
chama-os à verdade plena do amor passando através das renúncias que são necessárias para
chegarem à comunhão eclesial perfeita. A Igreja acompanha-os com uma pastoral imbuída
simultaneamente de suavidade e de firmeza,90 mostrando-lhes sobretudo a luz dos mistérios
cristãos que se reflecte sobre a natureza e os afectos humanos.
Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio
29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja,
compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimónio,
aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de aspirar.91 Por isso, é
mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se
encontram não poucos fiéis que, depois de terem celebrado o sacramento do Matrimónio, se
divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo,
uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo
os próprios ambientes católicos. Os pastores, por amor da verdade, são obrigados a discernir
bem as diferentes situações, para ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis
implicados.92 O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura
(Mc 10,2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados recasados, porque o seu estado e
condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é
significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados recasados, não obstante a sua
situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na
esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na
Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da Palavra de Deus, da adoração
eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote
ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência,
do empenho na educação dos filhos.
Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental
contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há
que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico,93 a presença no território dos
tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; 94 é
necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito
funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que «é uma obrigação grave tornar a
actuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis».95 No entanto, é
preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista como se estivesse em contraposição com o
direito; ao contrário, deve-se partir do pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre
direito e pastoral é o amor pela verdade: com efeito, esta nunca é abstracta, mas «integra-se no
itinerário humano e cristão de cada fiel».96 Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do
vínculo matrimonial e se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a
convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viverem a sua relação segundo as
exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente
abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial.
Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e
por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para
que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimónio.97
Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos países, o Sínodo
recomendou ainda que se tivesse o máximo cuidado pastoral com a formação dos nubentes e a
verificação prévia das suas convicções sobre os compromissos irrenunciáveis para a validade do
sacramento do Matrimónio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar que impulsos
emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir responsabilidades que depois
não poderão honrar.98 Demasiado grande é o bem que a Igreja e a sociedade inteira esperam do
Matrimónio e da família, fundada sobre o mesmo, para não nos comprometermos a fundo neste
âmbito pastoral específico; Matrimónio e família são instituições cuja verdade deve ser
promovida e defendida de qualquer equívoco, porque todo o dano a elas causado é realmente
uma ferida que se inflige à convivência humana como tal.
EUCARISTIA E ESCATOLOGIA
Eucaristia, dom para o homem a caminho
30. Se é certo que os sacramentos são uma realidade que pertence à Igreja peregrina no tempo
99, rumo à plena manifestação da vitória de Cristo ressuscitado, é igualmente verdade que,
sobretudo na liturgia eucarística, nos é dado saborear antecipadamente a consumação
escatológica para a qual todo o homem e a criação inteira estão a caminho (Rm 8,19s). O
homem é criado para a felicidade verdadeira e eterna, que só o amor de Deus pode dar; mas a
nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se não lhe fosse possível experimentar, já desde agora,
algo da consumação futura. Aliás, para poder caminhar na direcção justa, o homem necessita de
estar orientado para a meta final; esta, na realidade, é o próprio Cristo Senhor, vencedor do
pecado e da morte, que se torna presente para nós de maneira especial na celebração eucarística.
Deste modo, embora sejamos ainda «estrangeiros e peregrinos» (1Ped 2,11) neste mundo, pela
fé, participamos já da plenitude da vida ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua
dimensão intensamente escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho.
O banquete escatológico
31. Reflectindo sobre este mistério, podemos dizer que Cristo, com a sua vinda, se colocou em
sintonia com a expectativa presente no povo de Israel, na Humanidade inteira e
fundamentalmente na própria criação. Com o dom de si mesmo, inaugurou objectivamente o
tempo escatológico. Cristo veio chamar à unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo
11,52), manifestando claramente a intenção de congregar a comunidade da Aliança para dar
cumprimento às promessas feitas por Deus a nossos pais (Jr 23,3; 31,10; Lc 1,55.70). Com o
chamamento dos Doze – número que evoca as doze tribos de Israel – e o mandato que lhes
confiou na Última Ceia, antes da sua paixão redentora, de celebrarem o seu memorial, Jesus
manifestou que queria transferir, para a comunidade inteira por Ele fundada, a missão de ser, na
história, sinal e instrumento da reunificação escatológica que nele teve início. Por isso, em cada
celebração eucarística, realiza-se sacramentalmente a unificação escatológica do povo de Deus.
Para nós, o banquete eucarístico é uma antecipação real do banquete final, preanunciado pelos
profetas (Is 25,6-9) e descrito no Novo Testamento como «as núpcias do Cordeiro» (Ap 19,7-9)
que se hão-de celebrar na comunhão dos santos.100
Oração pelos defuntos
32. A celebração eucarística, na qual anunciamos a morte do Senhor e proclamamos a sua
ressurreição, enquanto aguardamos a sua vinda gloriosa, é penhor da glória futura, quando
mesmo os nossos corpos serão glorificados. Ao celebrarmos o memorial da nossa salvação,
reforça-se em nós a esperança da ressurreição da carne, juntamente com a possibilidade de
encontrarmos de novo, face a face, aqueles que nos precederam com o sinal da fé. Nesta linha,
queria, juntamente com os padres sinodais, lembrar a todos os fiéis a importância da oração de
sufrágio, particularmente a celebração de Missas, pelos defuntos para que, purificados, possam
chegar à visão beatífica de Deus.101 Sempre que descobrimos de novo a dimensão escatológica
presente na Eucaristia, celebrada e adorada, somos apoiados no nosso caminho e confortados na
esperança da glória (Rm 5,2; Tt 2,13).
A EUCARISTIA E A VIRGEM MARIA
33. Da relação entre a Eucaristia e os restantes sacramentos, juntamente com o significado
escatológico dos santos mistérios, irrompe o perfil da vida cristã, chamada a ser em cada
instante culto espiritual, oferta de si mesma agradável a Deus. E, se é verdade que nos
encontramos todos ainda a caminho, rumo à plena consumação da nossa esperança, isto não
impede de podermos já agora reconhecer, com gratidão, que tudo aquilo que Deus nos deu, se
realizou perfeitamente na Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa: a sua assunção ao Céu em corpo
e alma é, para nós, sinal de segura esperança, enquanto nos aponta a nós, peregrinos no tempo,
aquela meta escatológica que o sacramento da Eucaristia desde já nos faz saborear.
Em Maria Santíssima, vemos perfeitamente realizada também a modalidade sacramental com
que Deus alcança e envolve na sua iniciativa salvífica a criatura humana. Desde a anunciação ao
Pentecostes, Maria de Nazaré aparece como uma pessoa cuja liberdade está completamente
disponível à vontade de Deus; a sua Imaculada Conceição revela-se propriamente na docilidade
incondicional à palavra divina. A fé obediente é a forma que a sua vida assume em cada instante
perante a acção de Deus: Virgem à escuta, Ela vive em plena sintonia com a vontade divina;
conserva no seu coração as palavras que lhe chegam da parte de Deus e, dispondo-as à maneira
de um mosaico, aprende a compreendê-las mais a fundo (Lc 2,19.51); Maria é a grande Crente
que, cheia de confiança, se coloca nas mãos de Deus, abandonando-se à sua vontade.102 Um tal
mistério vai crescendo de intensidade até chegar ao pleno envolvimento dela na missão
redentora de Jesus; como afirmou o Concílio Vaticano II, «assim avançou a Virgem pelo
caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à cruz. Junto desta, esteve, não
sem desígnio de Deus (Jo 19,25), padecendo acerbamente com o seu Filho único, e associandose
com coração de mãe ao seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que dela
nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-a por mãe ao discípulo, com estas
palavras: mulher, eis aí o teu filho (Jo 19,26-27)».103 Desde a anunciação até à cruz, Maria é
aquela que acolhe a Palavra que nela se fez carne e foi até emudecer no silêncio da morte. É ela,
enfim, que recebe nos seus braços o corpo imolado, já exânime, daquele que verdadeiramente
amou os seus «até ao fim» (Jo 13,1).
Por isso, sempre que, na liturgia eucarística, nos abeiramos do Corpo e do Sangue de Cristo,
dirigimo-nos também a ela que, por toda a Igreja, acolheu o sacrifício de Cristo, aderindo
plenamente ao mesmo. Justamente afirmaram os padres sinodais que «Maria inaugura a
participação da Igreja no sacrifício do Redentor».104 Ela é a Imaculada que acolhe
incondicionalmente o dom de Deus, e, desta forma, fica associada à obra da salvação. Maria de
Nazaré, ícone da Igreja nascente, é o modelo para cada um de nós saber como é chamado a
acolher a doação que Jesus fez de si mesmo na Eucaristia.
II PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO
«Em verdade, em verdade vos digo: Não foi Moisés que vos deu o pão que vem do Céu; meu
Pai é que vos dá o verdadeiro Pão que vem do Céu» (Jo 6,32)
Norma da oração e norma de fé
34. O Sínodo dos Bispos reflectiu demoradamente sobre a relação intrínseca entre fé eucarística
e celebração, pondo em evidência a ligação entre a norma da oração (lex orandi) e a norma de fé
(lex credendi) e sublinhando o primado da acção litúrgica. É necessário viver a Eucaristia como
mistério da fé, autenticamente celebrado, bem cientes de que «a inteligência da fé (intellectus
fidei) sempre está originariamente em relação com a acção litúrgica da Igreja»:105 neste
âmbito, a reflexão teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo
próprio Cristo; por outro lado, a acção litúrgica nunca pode ser considerada genericamente,
prescindindo do mistério da fé. Com efeito, a fonte da nossa fé e da liturgia eucarística é o
mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de si próprio no mistério pascal.
Beleza e liturgia
35. A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no
valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma
ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade (veritatis splendor). Na liturgia, brilha o
mistério pascal, pelo qual o próprio Cristo nos atrai a si e chama à comunhão. Em Jesus, como
costumava dizer São Boaventura, contemplamos a beleza e o esplendor das origens.106
Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não enquanto mero esteticismo, mas como
modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata,
fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o
amor.107 Já na criação, Deus se deixa entrever na beleza e harmonia do universo (Sb 13,5; Rm
1,19-20). Depois, no Antigo Testamento, encontramos sinais grandiosos do esplendor da força
de Deus, que se manifesta com a sua glória através dos prodígios realizados no meio do povo
eleito (Ex 14; 16,10; 24,12-18; Nm 14,20-23). No Novo Testamento, realiza-se definitivamente
esta epifania de beleza, na revelação de Deus em Jesus Cristo: 108 Ele é a manifestação plena
da glória divina. Na glorificação do Filho, resplandece e comunica-se a glória do Pai (Jo 1,14;
8,54; 12,28; 17,1). Mas, esta beleza não é uma simples harmonia de formas; «o mais belo dos
filhos do homem» (Sl 45[44],3) misteriosamente é também um indivíduo «sem distinção nem
beleza que atraia o nosso olhar» (Is 53,2). Jesus Cristo mostra-nos como a verdade do amor sabe
transfigurar inclusive o mistério sombrio da morte, na luz radiante da ressurreição. Aqui o
esplendor da glória de Deus supera toda a beleza do mundo. A verdadeira beleza é o amor de
Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal.
A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da Glória de Deus e, de certa
forma, constitui o Céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os
traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a
caminho de Jerusalém, quis transfigurar-se diante deles (Mc 9,2). Concluindo, a beleza não é
um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do
próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve
prestar à acção litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza.
A CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA, OBRA DE CRISTO TOTAL
Cristo inteiro: Cabeça e Corpo
36. A beleza intrínseca da liturgia tem, como sujeito próprio, Cristo ressuscitado e glorificado
no Espírito Santo, que inclui a Igreja na sua acção.109 Nesta perspectiva, é muito sugestivo
recordar as palavras de Santo Agostinho que descrevem, de modo eficaz, esta dinâmica de fé
própria da Eucaristia; referindo-se precisamente ao mistério eucarístico, o grande santo de
Hipona põe em evidência como o próprio Cristo nos assimila a si mesmo: «O pão que vedes
sobre o altar, santificado com a Palavra de Deus, é o Corpo de Cristo. O cálice, ou melhor,
aquilo que o cálice contém, santificado com as palavras de Deus, é Sangue de Cristo. Com estes
[sinais], Cristo Senhor quis confiar-nos o seu corpo e o seu sangue, que derramou por nós para a
remissão dos pecados. Se os recebestes bem, vós mesmos sois aquele que recebestes».110
Assim, «tornamo-nos não apenas cristãos, mas o próprio Cristo».111 Nisto podemos contemplar
a acção misteriosa de Deus, que inclui a unidade profunda, entre nós e o Senhor Jesus: «De
facto, não se pode crer que Cristo esteja na cabeça sem estar também no corpo, pois Ele está
todo inteiro na cabeça e no corpo (Christus totus in capite et in corpore)».112
Eucaristia e Cristo ressuscitado
37. Visto que a liturgia eucarística é essencialmente acção de Deus (actio Dei) que nos envolve
em Jesus por meio do Espírito, o seu fundamento não está à mercê do nosso arbítrio e não pode
suportar a chantagem das modas passageiras. Vale aqui também, sem dúvida, a advertência de
São Paulo: «Ninguém pode pôr outro fundamento diferente do que foi posto, isto é, Jesus
Cristo» (1Cor 3,11). O Apóstolo das Gentes certifica-nos ainda, referindo-se à Eucaristia, que
não nos comunica uma doutrina pessoal, mas aquilo que, por sua vez, tinha recebido (1Cor
11,23); de facto, a celebração da Eucaristia implica a Tradição viva. A Igreja celebra o sacrifício
eucarístico, obedecendo ao mandato de Cristo, a partir da experiência do Ressuscitado e da
efusão do Espírito Santo. Por este motivo, a comunidade cristã, desde os seus primórdios,
reúne-se para a fracção do pão (fractio panis) no Dia do Senhor. O Dia em que Cristo
ressuscitou dos mortos, o Domingo, é também o primeiro dia da semana, aquele em que a
tradição do Antigo Testamento contemplava o início da criação. O dia da criação tornou-se
agora o dia da «nova criação», o dia da nossa libertação, no qual fazemos memória de Cristo
morto e ressuscitado.113
Arte da celebração
38. Durante os trabalhos sinodais, foi várias vezes recomendada a necessidade de superar toda e
qualquer separação entre a arte da celebração (ars celebrandi, isto é, a arte de celebrar
rectamente) e a participação plena, activa e frutuosa de todos os fiéis: com efeito, o primeiro
modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a condigna celebração do
mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a participação activa (actuosa
participatio).114 Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua integridade, pois
é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os
crentes, chamados a viver a celebração, enquanto povo de Deus, sacerdócio real, nação santa
(1Ped 2,4-5.9).115
O bispo, liturgista por excelência
39. Se é verdade que todo o povo de Deus participa na liturgia eucarística, uma função
imprescindível, relativamente à correcta ars celebrandi, compete todavia àqueles que receberam
o sacramento da Ordem. Bispos, sacerdotes e diáconos, cada qual segundo o próprio grau,
devem considerar a celebração como o seu dever principal.116 Antes de mais ninguém, o bispo
diocesano: de facto, como «primeiro dispensador dos mistérios de Deus, na Igreja particular que
lhe está confiada, ele é o guia, o promotor e o guardião de toda a vida litúrgica».117 Tudo isto é
decisivo para a vida da Igreja particular, não só porque a comunhão com o bispo é condição
para que seja legítima uma celebração no respectivo território, mas também porque ele mesmo é
o liturgista por excelência da sua Igreja.118 Compete-lhe salvaguardar a concorde unidade das
celebrações na sua diocese; por isso, deve ser «preocupação do bispo fazer com que os
presbíteros, os diáconos e os fiéis compreendam cada vez melhor o sentido autêntico dos ritos e
dos textos litúrgicos, levando-os deste modo a uma activa e frutuosa celebração da
Eucaristia».119 De modo particular, exorto a fazer tudo o que for necessário a fim de que as
celebrações litúrgicas realizadas pelo bispo na catedral se desenrolem no respeito cabal da arte
da celebração, para que possam ser consideradas como modelo por todas as igrejas espalhadas
no território.120
O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais
40. Ao ressaltar a importância da arte da celebração, consequentemente põe-se em evidência o
valor das normas litúrgicas.121 Aquela deve favorecer o sentido do sagrado e a utilização das
formas exteriores que educam para tal sentido, como, por exemplo, a harmonia do rito, das
vestes litúrgicas, da decoração e do lugar sagrado. A celebração eucarística é frutuosa, quando
os sacerdotes e os responsáveis da pastoral litúrgica se esforçam por dar a conhecer os livros
litúrgicos em vigor e as respectivas normas, pondo em destaque as riquezas estupendas da
Instrução Geral do Missal Romano e da Instrução das Leituras da Missa. Talvez se dê por
adquirido, nas comunidades eclesiais, o seu conhecimento e devido apreço, mas,
frequentemente, não é assim; na realidade, trata-se de textos onde estão contidas riquezas que
guardam e exprimem a fé e o caminho do povo de Deus, ao longo dos dois milénios da sua
história. Igualmente importante para uma correcta arte da celebração é a atenção a todas as
formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e canto, gestos e silêncios, movimento do
corpo, cores litúrgicas dos paramentos. Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal
variedade de níveis de comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A
simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos,
comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas. A atenção e a
obediência à estrutura própria do rito, ao mesmo tempo que exprimem a consciência do carácter
de dom da Eucaristia, manifestam a vontade que o ministro tem de acolher, com dócil gratidão,
esse dom inefável.
Arte ao serviço da celebração
41. A profunda ligação entre a beleza e a liturgia deve levar-nos a considerar atentamente todas
as expressões artísticas colocadas ao serviço da celebração.122 Uma componente importante da
arte sacra é, sem dúvida, a arquitectura das igrejas,123 nas quais há-de sobressair a coerência
entre os elementos próprios do presbitério: altar, crucifixo, sacrário, ambão, cadeira. A este
respeito, tenha-se presente que a finalidade da arquitectura sacra é oferecer à Igreja que celebra
os mistérios de fé, especialmente a Eucaristia, o espaço mais idóneo para uma condigna
realização da sua acção litúrgica; 124 de facto, a natureza do templo cristão define-se
precisamente pela acção litúrgica, a qual implica a reunião dos fiéis (ecclesia), que são as pedras
vivas do templo (1Ped 2,5).
O mesmo princípio vale para toda a arte sacra em geral, especialmente para a pintura e a
escultura, devendo a iconografia religiosa ser orientada para a mistagogia sacramental. Um
conhecimento profundo das formas que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos séculos,
pode ser de grande ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar arquitectos e artistas
para lhes encomendar obras de arte destinadas à acção litúrgica; por isso, é indispensável que,
na formação dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a
História da Arte, com especial referência aos edifícios de culto, à luz das normas litúrgicas.
Enfim, é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza;
dever-se-á ter respeito e cuidado também pelos paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para
que, interligados de forma orgânica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus,
manifestem a unidade da fé e reforcem a devoção.125
O canto litúrgico
42. Na arte da celebração, ocupa lugar de destaque o canto litúrgico.126 Com razão afirma
Santo Agostinho, num famoso sermão: «O homem novo conhece o cântico novo. O cântico é
uma manifestação de alegria e, se considerarmos melhor, um sinal de amor».127 O povo de
Deus, reunido para a celebração, canta os louvores de Deus. Na sua história bimilenária, a Igreja
criou, e continua a criar, música e cânticos que constituem um património de fé e amor que não
se deve perder. Verdadeiramente, em liturgia, não podemos dizer que tanto vale um cântico
como outro; a propósito, é necessário evitar a improvisação genérica ou a introdução de géneros
musicais que não respeitem o sentido da liturgia. Enquanto elemento litúrgico, o canto deve
integrar-se na forma própria da celebração; 128 consequentemente, tudo – no texto, na melodia,
na execução – deve corresponder ao sentido do mistério celebrado, às várias partes do rito e aos
diferentes tempos litúrgicos.129 Enfim, embora tendo em conta as distintas orientações e as
diferentes e amplamente louváveis tradições, desejo – como foi pedido pelos padres sinodais –
que se valorize adequadamente o canto gregoriano,130 como canto próprio da liturgia
romana.131
A ESTRUTURA DA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
43. Depois de ter recordado os elementos fundamentais da arte da celebração relevados durante
os trabalhos sinodais, desejo chamar a atenção mais especificamente para algumas partes da
estrutura da celebração eucarística, que necessitam de um cuidado particular no nosso tempo, a
fim de permanecermos fiéis à intenção profunda da renovação litúrgica que o Concílio Vaticano
II quis, em continuidade com toda a grande tradição eclesial.
Unidade intrínseca da acção litúrgica
44. Antes de mais, é necessário reflectir sobre a unidade intrínseca do rito da Santa Missa,
evitando, tanto nas catequeses como na modalidade de celebração, que se dê ensejo a uma visão
justaposta das duas partes do rito: a liturgia da Palavra e a liturgia Eucarística — para além dos
ritos iniciais e conclusivo — «estão entre si tão estreitamente ligadas que constituem um único
acto de culto».132 De facto, existe uma ligação intrínseca entre a Palavra de Deus e a parte
eucarística: ao ouvirmos a Palavra de Deus, nasce ou reforça-se a fé (Rm 10,17), enquanto, na
parte eucarística, o Verbo feito carne dá-se a nós como alimento espiritual; 133 assim, «a partir
das duas mesas, a da Palavra de Deus e a do Corpo de Cristo, a Igreja recebe e oferece aos fiéis
o Pão de vida».134 Por isso, deve ter-se constantemente presente que a Palavra de Deus, lida e
anunciada na liturgia pela Igreja, conduz à Eucaristia como a seu fim conatural.
A liturgia da Palavra
45. Juntamente com o Sínodo, peço que a liturgia da Palavra seja sempre devidamente
preparada e vivida. Recomendo, pois, vivamente que se tenha grande cuidado, nas liturgias, com
a proclamação da Palavra de Deus por leitores bem preparados; nunca nos esqueçamos de que,
«quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura, é o próprio Deus que fala ao seu povo, é Cristo
presente na sua palavra que anuncia o Evangelho».135 Se as circunstâncias o recomendarem,
pode-se pensar numas breves palavras de introdução, que ajudem os fiéis a tomar renovada
consciência do momento. Para ser bem compreendida, a Palavra de Deus deve ser escutada e
acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarístico. Com
efeito, a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito carne (Jo 1,14) e possui uma
referência intrínseca à pessoa de Cristo e à modalidade sacramental da sua permanência: Cristo
não fala no passado mas no nosso presente, tal como Ele está presente na acção litúrgica. Neste
horizonte sacramental da revelação cristã,136 o conhecimento e o estudo da Palavra de Deus
permitem-nos valorizar, celebrar e viver melhor a Eucaristia; também aqui se mostra em toda a
sua verdade a conhecida asserção: «A ignorância da Escritura é ignorância de Cristo».137
Para isso, é necessário ajudar os fiéis a valorizarem os tesouros da Sagrada Escritura presentes
no Leccionário, por meio de iniciativas pastorais, de celebrações da Palavra e da leitura orante
(lectio divina). Além disso, não se esqueça de promover as formas de oração confirmadas pela
tradição: a Liturgia das Horas, sobretudo Laudes, Vésperas, Completas e ainda as celebrações
das Vigílias. A oração dos Salmos, as leituras bíblicas e as da grande tradição apresentadas no
Ofício Divino podem levar a uma experiência profunda do acontecimento de Cristo e da
economia da salvação, capaz por sua vez de enriquecer a compreensão e a participação na
celebração eucarística.138
A homilia
46. Pensando na importância da Palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a qualidade
da homilia; de facto, esta «constitui parte integrante da acção litúrgica»,139 cuja função é
favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da Palavra de Deus na vida dos fiéis. Por
isso, os ministros ordenados devem «preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num
adequado conhecimento da Sagrada Escritura».140 Evitem-se homilias genéricas ou abstractas;
de modo particular, peço aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a Palavra de
Deus proclamada em estreita relação com a celebração sacramental 141 e com a vida da
comunidade, de tal modo que a Palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja.142
Tenha-se presente, portanto, a finalidade catequética e exortativa da homilia. Considera-se que é
oportuno oferecer prudentemente, a partir do Leccionário trienal, homilias temáticas aos fiéis
que tratem, ao longo do ano litúrgico, os grandes temas da fé cristã, haurindo de quanto está
autorizadamente proposto pelo Magistério nos quatro «pilares» do Catecismo da Igreja Católica
e no recente Compêndio: a profissão da fé, a celebração do mistério cristão, a vida em Cristo, a
oração cristã.143
Apresentação das oferendas
47. Os padres sinodais chamaram a atenção também para a apresentação das oferendas. Não se
trata simplesmente duma espécie de «intervalo», entre a liturgia da Palavra e a liturgia
Eucarística, o que faria, sem dúvida, atenuar o sentido de um único rito composto de duas partes
interligadas; realmente, neste gesto humilde e simples, encerra-se um significado muito grande:
no pão e no vinho que levamos ao altar, toda a criação é assumida por Cristo Redentor para ser
transformada e apresentada ao Pai.144 Nesta perspectiva, levamos ao altar também todo o
sofrimento e tribulação do mundo, na certeza de que tudo é precioso aos olhos de Deus. Este
gesto não necessita de ser enfatizado com descabidas complicações para ser vivido no seu
significado autêntico: o mesmo permite valorizar a participação primeira que Deus pede ao
homem, ou seja, levar em si mesmo a obra divina à perfeição, e dar assim pleno sentido ao
trabalho humano que, através da celebração eucarística, fica unido ao sacrifício redentor de
Cristo.
A Oração Eucarística
48. A Oração Eucarística é «o ponto central e culminante de toda a celebração»; 145 merece ser
convenientemente ressaltada a sua importância. As diversas Orações Eucarísticas contidas no
Missal foram-nos transmitidas pela Tradição viva da Igreja e caracterizam-se por uma riqueza
teológica e espiritual inesgotável; os fiéis devem poder ser capazes de apreciá-la. A isto mesmo
nos ajuda a Instrução Geral do Missal Romano, quando lembra os elementos fundamentais de
cada Oração Eucarística: acção de graças, aclamação, epiclese, narração da instituição,
consagração, anamnese, oblação, intercessões e doxologia final.146 Em particular, a
espiritualidade eucarística e a reflexão teológica são iluminadas se se contempla a profunda
unidade que existe, na anáfora, entre a invocação do Espírito Santo e a narração da
instituição,147 quando «se realiza o sacrifício que o próprio Cristo instituiu na Última
Ceia».148 De facto, «por meio de invocações especiais, a Igreja implora o poder do Espírito
Santo, para que os dons oferecidos pelos homens sejam consagrados, isto é, se convertam no
Corpo e Sangue de Cristo, e para que a vítima imaculada, que vai ser recebida na comunhão,
opere a salvação daqueles que dela vão participar».149
Saudação da paz
49. A Eucaristia é, por sua natureza, sacramento da paz. Na celebração litúrgica, esta dimensão
do mistério eucarístico encontra a sua manifestação específica no rito da saudação da paz. Tratase,
sem dúvida, dum sinal de grande valor (Jo 14,27). Neste nosso tempo, pavorosamente cheio
de conflitos, tal gesto adquire – mesmo do ponto de vista da sensibilidade comum – um relevo
particular, pois a Igreja sente cada vez mais como sua missão própria a de implorar ao Senhor o
dom da paz e da unidade para si mesma e para a família humana inteira. A paz é, sem dúvida,
uma aspiração radical que se encontra no coração de cada um; a Igreja dá voz ao pedido de paz
e reconciliação que brota do espírito de cada pessoa de boa vontade, apresentando-o àquele que
«é a nossa paz» (Ef 2,14) e pode pacificar de novo povos e pessoas, mesmo onde tivessem
falido os esforços humanos. A partir de tudo isto, é possível compreender a intensidade com que
frequentemente é sentido o rito da paz, na celebração litúrgica. A este respeito, porém, durante o
Sínodo dos Bispos foi sublinhada a conveniência de moderar este gesto, que pode assumir
expressões excessivas, suscitando um pouco de confusão na assembleia, precisamente antes da
comunhão. É bom lembrar que nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessária para se
manter um clima apropriado à celebração, limitando, por exemplo, a saudação da paz a quem
está mais próximo.150
Distribuição e recepção da Eucaristia
50. Outro momento da celebração, que necessita de menção, é a distribuição e a recepção da
sagrada comunhão. Peço a todos, especialmente aos ministros ordenados e àqueles que,
devidamente preparados e em caso de real necessidade, estejam autorizados para o ministério da
distribuição da Eucaristia, que façam o possível para que o gesto, na sua simplicidade,
corresponda ao seu valor de encontro pessoal com o Senhor Jesus no sacramento. Quanto às
prescrições para a correcta prática do mesmo, vejam-se os documentos recentemente emanados;
151 todas as comunidades cristãs se atenham fielmente às normas vigentes, vendo nelas a
expressão da fé e do amor que todos devemos ter por este sublime sacramento. Além disso, não
seja transcurado o tempo precioso de acção de graças depois da comunhão: além da entoação
dum cântico oportuno, pode ser muito útil também permanecer recolhidos em silêncio.152
A propósito, desejo chamar a atenção para um problema pastoral com que frequentemente nos
deparamos no nosso tempo: em determinadas circunstâncias como, por exemplo, nas Missas
celebradas por ocasião de matrimónios, funerais ou acontecimentos análogos, encontram-se
presentes na celebração, além dos fiéis praticantes, outros que talvez há anos não se aproximam
do altar ou se encontram numa situação de vida que não permite o acesso aos sacramentos;
outras vezes acontece que estão presentes pessoas de outras confissões cristãs ou até de outras
religiões. Circunstâncias semelhantes verificam-se também em igrejas que são meta de turistas,
sobretudo nas cidades de grande valor artístico. Ora, salta aos olhos a necessidade de encontrar
formas breves e incisivas para alertar a todos sobre o sentido da comunhão sacramental e sobre
as condições que se requerem para a sua recepção. Em situações onde não se possa garantir a
necessária clareza quanto ao significado da Eucaristia, deve-se ponderar a oportunidade de
substituir a celebração eucarística por uma celebração da Palavra de Deus.153
A despedida: «Ite, missa est»
51. Por último, quero deter-me naquilo que disseram os padres sinodais acerca da saudação de
despedida no final da celebração eucarística. Depois da bênção, o diácono ou o sacerdote
despede o povo com as palavras «Ide em paz e o Senhor vos acompanhe», tradução aproximada
da fórmula latina: Ite, missa est. Nesta saudação, podemos identificar a relação entre a Missa
celebrada e a missão cristã no mundo. Na antiguidade, o termo «missa» significava
simplesmente «despedida»; mas, no uso cristão, o mesmo foi ganhando um sentido cada vez
mais profundo, tendo o termo «despedir» evoluído para «expedir em missão». Deste modo, a
referida saudação exprime sinteticamente a natureza missionária da Igreja; seria bom ajudar o
povo de Deus a aprofundar esta dimensão constitutiva da vida eclesial, tirando inspiração da
liturgia. Nesta perspectiva, pode ser útil dispor de textos, devidamente aprovados, para a oração
sobre o povo e a bênção final que explicitem tal ligação.154
PARTICIPAÇÃO ACTIVA
Autêntica participação
52. O Concílio Vaticano II colocara, justamente, uma ênfase particular sobre a participação
activa, plena e frutuosa de todo o povo de Deus, na celebração eucarística.155 A renovação
operada nestes anos proporcionou, sem dúvida, notáveis progressos na direcção desejada pelos
padres conciliares; mas não podemos ignorar que houve, às vezes, qualquer incompreensão,
precisamente acerca do sentido desta participação. Convém, pois, deixar claro que não se
pretende, com tal palavra, aludir a mera actividade exterior durante a celebração; na realidade, a
participação activa desejada pelo Concílio deve ser entendida, em termos mais substanciais, a
partir duma maior consciência do mistério que é celebrado e da sua relação com a vida
quotidiana. Permanece plenamente válida ainda a recomendação da Constituição conciliar
Sacrosanctum Concilium feita aos fiéis, quando os exorta a não assistirem à liturgia eucarística
«como estranhos ou espectadores mudos», mas a participarem «na acção sagrada, consciente,
activa e piedosamente».156 E o Concílio, desenvolvendo seu pensamento, prossegue: Os fiéis
«sejam instruídos pela Palavra de Deus; alimentem-se à mesa do Corpo do Senhor; dêem graças
a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não
só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo Mediador, progridam na
unidade com Deus e entre si».157
Participação e ministério sacerdotal
53. A beleza e a harmonia da acção litúrgica encontram significativa expressão na ordem com
que cada um é chamado a participar activamente nela; isto requer o conhecimento das diversas
funções hierárquicas implicadas na própria celebração. Pode ser útil lembrar que a participação
activa na mesma não coincide, de per si, com o desempenho dum ministério particular;
sobretudo, não favorece a causa da participação activa dos fiéis uma confusão gerada pela
incapacidade de distinguir, na comunhão eclesial, as diversas funções que cabem a cada um.158
De modo particular, convém que haja clareza quanto às funções específicas do sacerdote: como
atesta a tradição da Igreja, é ele quem, insubstituivelmente, preside à celebração eucarística
inteira, desde a saudação inicial até à bênção final. Em virtude da Ordem sacra recebida,
representa Jesus Cristo cabeça da Igreja e, na forma que lhe é própria, também a Igreja.159 De
facto, cada celebração da Eucaristia é conduzida pelo Bispo, «quer pessoalmente, quer pelos
presbíteros seus colaboradores»; 160 e é coadjuvado pelo diácono, que tem na celebração
algumas funções específicas: preparar o altar e assistir ao sacerdote, proclamar o Evangelho e,
eventualmente, fazer a homilia, propor aos fiéis as intenções da Oração Universal, distribuir a
Eucaristia aos fiéis.161 Em relação com estes ministérios dependentes do sacramento da Ordem,
aparecem depois outros ministérios para o serviço litúrgico, louvavelmente desempenhados por
religiosos e leigos preparados.162
Celebração eucarística e inculturação
54. Partindo fundamentalmente de quanto afirmou o Concílio Vaticano II, várias vezes foi
sublinhada a importância da participação activa dos fiéis no sacrifício eucarístico. Para a
favorecer, podem ter lugar algumas adaptações apropriadas aos respectivos contextos e às
diversas culturas; 163 o facto de ter havido alguns abusos não turba a clareza deste princípio,
que deve ser mantido segundo as necessidades reais da Igreja, a qual vive e celebra o mesmo
mistério de Cristo em situações culturais diferentes. De facto, o Senhor Jesus, precisamente no
mistério da Encarnação, ao nascer de uma mulher como perfeito homem (Gl 4,4) colocou-se em
relação directa não só com as expectativas que se registavam no âmbito do Antigo Testamento,
mas também com as cultivadas por todos os povos; manifestou, assim, que Deus pretende
alcançar-nos no nosso contexto vital. Por conseguinte, é útil, para uma participação mais eficaz
dos fiéis nos santos mistérios, a continuação do processo de inculturação, inclusivamente quanto
à celebração eucarística, tendo em conta as possibilidades de adaptação oferecidas pela
Instrução Geral do Missal Romano,164 interpretadas à luz dos critérios estabelecidos pela IV
Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, designada
Varietates legitimæ, de 25 de Janeiro de 1994,165 e pelas directrizes expressas pelo papa João
Paulo II, nas Exortações pós-sinodais Ecclesia in África, Ecclesia in América, Ecclesia in Ásia,
Ecclesia in Oceânia, Ecclesia in Europa.166 Com esta finalidade, recomendo às Conferências
Episcopais que prossigam com esta obra, favorecendo um justo equilíbrio entre os critérios e
directrizes já emanados e as novas adaptações,167 sempre de acordo com a Sé Apostólica.
Condições pessoais para uma participação activa
55. Ao considerarem o tema da participação activa (actuosa participatio) dos fiéis no rito
sagrado, os padres sinodais ressaltaram também as condições pessoais que se requerem em cada
um para uma frutuosa participação.168 Uma delas é, sem dúvida, o espírito de constante
conversão que deve caracterizar a vida de todos os fiéis: não podemos esperar uma participação
activa na liturgia eucarística, se nos abeiramos dela superficialmente e sem antes nos
interrogarmos sobre a própria vida. Favorecem tal disposição interior, por exemplo, o
recolhimento e o silêncio durante alguns momentos, pelo menos antes do início da liturgia, o
jejum e – quando for preciso – a confissão sacramental; um coração reconciliado com Deus
predispõe para a verdadeira participação. De modo particular é preciso alertar os fiéis que não se
pode verificar uma participação activa nos santos mistérios, se ao mesmo tempo não se procura
tomar parte activa na vida eclesial em toda a sua amplitude, incluindo o compromisso
missionário de levar o amor de Cristo para o meio da sociedade.
Sem dúvida, para a plena participação na Eucaristia é preciso também aproximar-se
pessoalmente do altar para receber a comunhão; 169 contudo, é preciso estar atento para que
esta afirmação, justa em si mesma, não induza os fiéis a um certo automatismo, levando-os a
pensar que, pelo simples facto de se encontrar na igreja durante a liturgia, se tenha o direito ou
mesmo – quem sabe – se sinta no dever de aproximar-se da mesa eucarística. Mesmo quando
não for possível abeirar-se da comunhão sacramental, a participação na Santa Missa permanece
necessária, válida, significativa e frutuosa; neste caso, é bom cultivar o desejo da plena união
com Cristo, por exemplo, através da prática da comunhão espiritual, recordada por João Paulo II
170 e recomendada por santos mestres de vida espiritual.171
Participação dos cristãos não católicos
56. Ao tratarmos o tema da participação, temos inevitavelmente de falar dos cristãos que
pertencem a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja
Católica. A este respeito, temos de dizer, por um lado, que o vínculo intrínseco existente entre a
Eucaristia e a unidade da Igreja nos faz desejar ardentemente o dia em que poderemos celebrar,
juntamente com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia e exprimir assim
visivelmente aquela plena unidade que Cristo quis para os seus discípulos (Jo 17,21); mas, por
outro lado, o respeito que devemos ao sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo impede-nos
de fazer dele um simples «meio» usado indiscriminadamente para alcançar a referida
unidade.172 De facto, a Eucaristia não manifesta somente a nossa comunhão pessoal com Jesus
Cristo, mas implica também a plena comunhão (communio) com a Igreja; este é o motivo pelo
qual, com dor mas não sem esperança, pedimos aos cristãos não católicos que compreendam e
respeitem a nossa convicção, que assenta na Bíblia e na Tradição: pensamos que a comunhão
eucarística e a comunhão eclesial se interpenetrem tão intimamente que se torna geralmente
impossível aos cristãos não católicos terem acesso a uma sem gozar da outra. Ainda mais
desprovida de sentido seria uma concelebração verdadeira e própria com ministros de Igrejas ou
Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. Não deixa,
porém, de ser verdade que, em ordem à salvação eterna, há a possibilidade de admitir indivíduos
cristãos não-católicos à Eucaristia, ao sacramento da Penitência e à Unção dos Enfermos; mas
isso supõe que se verifiquem determinadas e excepcionais situações, associadas a precisas
condições.173 Estas aparecem claramente indicadas no Catecismo da Igreja Católica 174 e no
seu Compêndio.175 É dever de cada um ater-se a elas fielmente.
Participação através dos meios de comunicação
57. Devido ao progresso admirável dos meios de comunicação, nos últimos decénios a palavra
«participação» adquiriu um significado mais amplo do que no passado; com satisfação, todos
reconhecemos que estes instrumentos oferecem novas possibilidades inclusivamente quanto à
celebração eucarística.176 Isto requer dos agentes pastorais do sector uma preparação específica
e um vivo sentido de responsabilidade; com efeito, a Santa Missa transmitida na televisão ganha
inevitavelmente um certo carácter de exemplaridade; daí o dever de prestar particular atenção a
que a celebração, além de se realizar em lugares dignos e bem preparados, respeite as normas
litúrgicas.
Enfim, quanto ao valor desta participação na Santa Missa pelos meios de comunicação, quem
assiste a tais transmissões deve saber que, em condições normais, não cumpre o preceito
dominical; de facto, a linguagem da imagem representa a realidade, mas não a reproduz em si
mesma.177 Se é muito louvável que idosos e doentes participem na Santa Missa festiva, através
das transmissões radiotelevisivas, o mesmo não se pode dizer de quem quisesse, por meio de
tais transmissões, dispensar-se de ir à igreja tomar parte na celebração eucarística na assembleia
da Igreja viva.
Participação activa dos doentes
58. Considerando a condição de quantos por motivos de saúde ou idade não podem ir aos
lugares de culto, quero chamar a atenção de toda a comunidade eclesial para a necessidade
pastoral de garantir a assistência espiritual aos doentes, quer estejam nas próprias casas quer se
encontrem no hospital. Diversas vezes, no Sínodo dos Bispos, se aludiu à sua condição; é
preciso providenciar para que estes nossos irmãos e irmãs possam receber, com frequência, a
comunhão sacramental; revigorando assim a sua relação com Cristo crucificado e ressuscitado,
poderão sentir a própria existência inserida plenamente na vida e missão da Igreja, por meio da
oferta do seu sofrimento em união com o sacrifício de Nosso Senhor. Uma particular atenção
há-de ser reservada aos deficientes: sempre que a sua condição o permita, a comunidade cristã
deve facilitar a sua participação na celebração no lugar de culto; a propósito, procure-se
remover, nos edifícios sagrados, eventuais obstáculos arquitectónicos que impeçam o seu acesso
aos deficientes. Enfim, seja garantida também a comunhão eucarística, na medida do possível,
aos deficientes mentais, baptizados e crismados: eles recebem a Eucaristia na fé também da
família ou da comunidade que os acompanha.178
A solicitude pelos presos
59. A tradição espiritual da Igreja, na esteira duma concreta afirmação de Cristo (Mt 25,36),
individuou na visita aos presos uma das obras de misericórdia corporais. Aqueles que se
encontram nesta situação têm particularmente necessidade de ser visitados pelo próprio Senhor,
no sacramento da Eucaristia; experimentar a solidariedade da comunidade eclesial, participar na
Eucaristia e receber a sagrada comunhão num período da vida tão especial e doloroso pode
seguramente contribuir para a qualidade do seu caminho de fé e favorecer a plena recuperação
social da pessoa. Interpretando votos formulados na assembleia sinodal, peço às dioceses para
providenciarem que haja, na medida do possível, um conveniente investimento de forças na
actividade pastoral dedicada ao cuidado espiritual dos presos.179
Os migrantes e a participação na Eucaristia
60. Ao abordar o problema das pessoas que, por motivos vários, são obrigadas a deixar a sua
terra, o Sínodo manifestou particular gratidão a quantos vivem empenhados no cuidado pastoral
dos migrantes. Neste contexto, uma atenção específica deve ser dada aos migrantes membros
das Igrejas Católicas Orientais, já que, à separação da própria casa, vem juntar-se a dificuldade
de não poderem participar na liturgia eucarística, segundo o próprio rito a que pertencem; por
isso, onde for possível, seja-lhes concedido usufruir da assistência de sacerdotes do seu rito. Em
todo o caso, peço aos bispos que acolham estes irmãos na caridade de Cristo. O encontro entre
fiéis de rito diverso pode tornar-se também ocasião de mútuo enriquecimento: penso de modo
particular no benefício que pode resultar, sobretudo para o clero, do conhecimento das diversas
tradições.180
As grandes concelebrações
61. A Assembleia sinodal deteve-se a analisar a qualidade da participação nas grandes
celebrações que têm lugar em circunstâncias particulares e nas quais se encontram, para além
dum grande número de fiéis, também muitos sacerdotes concelebrantes.181 É fácil, por um
lado, reconhecer o valor destes momentos, especialmente quando preside o Bispo, rodeado do
seu presbitério e dos diáconos; mas, por outro, em tais ocasiões podem verificar-se problemas
quanto à expressão sensível da unidade do presbitério, especialmente na Oração Eucarística, e
quanto à distribuição da sagrada comunhão. Deve-se evitar que estas grandes concelebrações
criem dispersão; providencie-se a isto mesmo por meio de adequados instrumentos de
coordenação, e organizando o lugar de culto de tal modo que permita aos presbíteros e aos fiéis
uma plena e real participação. Entretanto, é preciso ter presente que se trata de concelebrações
com índole excepcional e limitadas a situações extraordinárias.
A língua latina
62. O que acabo de afirmar não deve, porém, ofuscar o valor destas grandes liturgias; penso
neste momento, em particular, nas celebrações que têm lugar durante encontros internacionais,
cada vez mais frequentes hoje, e que devem justamente ser valorizadas. A fim de exprimir
melhor a unidade e a universalidade da Igreja, quero recomendar o que foi sugerido pelo Sínodo
dos Bispos, em sintonia com as directrizes do Concílio Vaticano II: 182 exceptuando as leituras,
a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em língua latina; sejam
igualmente recitadas em latim as orações mais conhecidas 183 da Tradição da Igreja e,
eventualmente, entoadas algumas partes em canto gregoriano. A nível geral, peço que os futuros
sacerdotes sejam preparados, desde o tempo do seminário, para compreender e celebrar a Santa
Missa em latim, bem como para usar textos latinos e entoar o canto gregoriano; nem se
transcure a possibilidade de formar os próprios fiéis para saberem, em latim, as orações mais
comuns e cantarem, em gregoriano, determinadas partes da liturgia.184
Celebrações eucarísticas em pequenos grupos
63. Bem distinta é a situação criada em algumas circunstâncias pastorais, onde, precisamente
para uma participação mais consciente, activa e frutuosa, se favorecem as celebrações em
pequenos grupos. Embora reconhecendo o valor formativo subjacente a estas opções, é
necessário especificar que as mesmas devem ser harmonizadas com o conjunto da proposta
pastoral da diocese; com efeito, tais experiências perderiam o seu carácter pedagógico, se
fossem vistas em antagonismo ou paralelo com a vida da Igreja particular. A este respeito, o
Sínodo pôs em evidência alguns critérios a que se devem ater: os pequenos grupos devem servir
para unificar a comunidade, e não para a dividir; a prova disto mesmo há-de ver-se na prática
concreta; estes grupos devem favorecer a participação frutuosa da assembleia inteira e
preservar, na medida do possível, a unidade da vida litúrgica de cada uma das famílias.185
CELEBRAÇÃO INTERIORMENTE PARTICIPADA
Catequese mistagógica
64. A grande tradição litúrgica da Igreja ensina-nos que é necessário, para uma frutuosa
participação, esforçar-se por corresponder pessoalmente ao mistério que é celebrado, através do
oferecimento a Deus da própria vida em união com o sacrifício de Cristo pela salvação do
mundo inteiro. Por este motivo, o Sínodo dos Bispos recomendou que se fomentasse, nos fiéis,
profunda concordância das disposições interiores com os gestos e palavras; se ela faltasse, as
nossas celebrações, por muito animadas que fossem, arriscar-se-iam a cair no ritualismo. Assim,
é preciso promover uma educação da fé eucarística que predisponha os fiéis a viverem
pessoalmente o que se celebra. Vista a importância essencial desta participação pessoal e
consciente, quais poderiam ser os instrumentos de formação mais adequados? Para isso, os
padres sinodais indicaram unanimemente a estrada duma catequese de carácter mistagógico, que
leve os fiéis a penetrarem cada vez mais nos mistérios que são celebrados.186 Em concreto e
antes de mais, há que afirmar que, devido à relação entre a arte da celebração e a participação
activa, «a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada»; 187 com
efeito, por sua natureza a liturgia possui uma eficácia pedagógica própria para introduzir os fiéis
no conhecimento do mistério celebrado. Por isso mesmo, na tradição mais antiga da Igreja, o
caminho formativo do cristão – embora sem descurar a inteligência sistemática dos conteúdos
da fé – assumia sempre um carácter de experiência, em que era determinante o encontro vivo e
persuasivo com Cristo, anunciado por autênticas testemunhas. Neste sentido, quem introduz nos
mistérios é primariamente a testemunha; depois, este encontro aprofunda-se, sem dúvida, na
catequese e encontra a sua fonte e ápice na celebração da Eucaristia. Desta estrutura
fundamental da experiência cristã parte a exigência de um itinerário mistagógico, no qual se
hão-de ter sempre presente três elementos:
a) Trata-se, primeiramente, da interpretação dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos, em
conformidade com a tradição viva da Igreja; de facto, a celebração da Eucaristia, na sua riqueza
infinita, possui contínuas referências à história da salvação. Em Cristo crucificado e
ressuscitado, podemos celebrar verdadeiramente o centro recapitulador de toda a realidade (Ef
1,10); desde o seu início, a comunidade cristã leu os acontecimentos da vida de Jesus, e
particularmente o mistério pascal, em relação com todo o percurso do Antigo Testamento.
b) Além disso, a catequese mistagógica há-de preocupar-se por introduzir no sentido dos sinais
contidos nos ritos; esta tarefa é particularmente urgente numa época acentuadamente
tecnológica como a actual, que corre o risco de perder a capacidade de perceber os sinais e os
símbolos. Mais do que informar, a catequese mistagógica deverá despertar e educar a
sensibilidade dos fiéis para a linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à palavra,
constituem o rito.
c) Enfim, a catequese mistagógica deve preocupar-se por mostrar o significado dos ritos para a
vida cristã, em todas as suas dimensões: trabalho e compromisso, pensamentos e afectos,
actividade e repouso. Faz parte do itinerário mistagógico pôr em evidência a ligação dos
mistérios celebrados no rito com a responsabilidade missionária dos fiéis; neste sentido, o fruto
maduro da mistagogia é a consciência de que a própria vida vai sendo progressivamente
transformada pelos sagrados mistérios celebrados. Aliás, a finalidade de toda a educação cristã é
formar o fiel enquanto «homem novo» para uma fé adulta, que o torne capaz de testemunhar no
próprio ambiente a esperança cristã que o anima.
Condição necessária para se realizar esta tarefa educativa, no âmbito das nossas comunidades
eclesiais, é dispor de formadores adequadamente preparados; mas todo o povo de Deus deve,
sem dúvida, sentir-se comprometido nesta formação. Cada comunidade cristã é chamada a ser
lugar de introdução pedagógica aos mistérios que se celebram na fé; a propósito, durante o
Sínodo, os padres sublinharam a conveniência de um maior envolvimento das comunidades de
vida consagrada, movimentos e agregações que, pelo próprio carisma, possam dar novo impulso
à formação cristã.188 Temos a certeza de que, também no nosso tempo, o Espírito Santo não
poupa a efusão dos seus dons para sustentar a missão apostólica da Igreja, a quem compete
difundir a fé e educá-la até à sua maturidade.189
A reverência à Eucaristia
65. Um sinal convincente da eficácia que a catequese eucarística tem sobre os fiéis é
seguramente o crescimento neles do sentido do mistério de Deus presente entre nós; podemos
verificá-lo através de específicas manifestações de reverência à Eucaristia, nas quais o percurso
mistagógico deve introduzir os fiéis.190 Penso, em geral, na importância dos gestos e posições,
como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da Oração Eucarística. Embora
adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no contexto das diferentes culturas,
cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em cada celebração, diante da majestade
infinita de Deus, que chega até nós humildemente nos sinais sacramentais.
ADORAÇÃO E PIEDADE EUCARÍSTICA
A relação intrínseca entre celebração e adoração
66. Um dos momentos mais intensos do Sínodo vivemo-lo quando fomos à Basílica de São
Pedro, juntamente com muitos fiéis, fazer adoração eucarística. Com aquele momento de
oração, quis a Assembleia dos Bispos não se limitar às palavras, na sua chamada de atenção
para a importância da relação intrínseca entre a celebração eucarística e a adoração. Neste
significativo aspecto da fé da Igreja, encontra-se um dos elementos decisivos do caminho
eclesial que se realizou após a renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II. Quando a
reforma dava os primeiros passos, aconteceu às vezes não se perceber com suficiente clareza a
relação intrínseca entre a Santa Missa e a adoração do Santíssimo Sacramento; uma objecção
então em voga, por exemplo, partia da ideia que o pão eucarístico nos fora dado não para ser
contemplado, mas comido. Ora, tal contraposição, vista à luz da experiência de oração da Igreja,
aparece realmente destituída de qualquer fundamento; já Santo Agostinho dissera: «Nemo
autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit; (...) peccemus non adorando – ninguém
come esta carne, sem antes a adorar; (…) pecaríamos se não a adorássemos».191 De facto, na
Eucaristia, o Filho de Deus vem ao nosso encontro e deseja unir-se connosco; a adoração
eucarística é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o
maior acto de adoração da Igreja: 192 receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de
adoração d’Aquele que comungamos. Precisamente assim, e apenas assim, é que nos tornamos
um só com Ele e, de algum modo, saboreamos antecipadamente a beleza da liturgia celeste. O
acto de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na própria
celebração litúrgica. Com efeito, «somente na adoração pode maturar um acolhimento profundo
e verdadeiro. Precisamente neste acto pessoal de encontro com o Senhor amadurece depois
também a missão social, que está encerrada na Eucaristia e deseja romper as barreiras não
apenas entre o Senhor e nós mesmos, mas também, e sobretudo, as barreiras que nos separam
uns dos outros».193
A prática da adoração eucarística
67. Juntamente com a Assembleia sinodal, recomendo, pois, vivamente aos pastores da Igreja e
ao povo de Deus a prática da adoração eucarística tanto pessoal como comunitária.194 Para
isso, será de grande proveito uma catequese específica na qual se explique aos fiéis a
importância deste acto de culto que permite viver, mais profundamente e com maior fruto, a
própria celebração litúrgica. Depois, na medida do possível e sobretudo nos centros mais
populosos, será conveniente individuar igrejas ou capelas que se possam reservar
propositadamente para a adoração perpétua. Além disso, recomendo que na formação
catequética, particularmente nos itinerários de preparação para a Primeira Comunhão, se iniciem
as crianças no sentido e na beleza de demorar-se na companhia de Jesus, cultivando o enlevo
pela sua presença na Eucaristia. Quero exprimir, aqui, apreço e apoio a todos os institutos de
vida consagrada, cujos membros dedicam uma parte significativa do seu tempo à adoração
eucarística; deste modo, oferecem a todos o exemplo de pessoas que se deixam plasmar pela
presença real do Senhor. Desejo igualmente encorajar as associações de fiéis, nomeadamente as
confrarias, que assumem esta prática como seu compromisso especial, tornando-se assim
fermento de contemplação para toda a Igreja e apelo à centralidade de Cristo na vida dos
indivíduos e da comunidade.
Formas de devoção eucarística
68. O relacionamento pessoal que cada fiel estabelece com Jesus, presente na Eucaristia,
recondu-lo sempre ao conjunto da comunhão eclesial, alimentando nele a consciência da sua
pertença ao Corpo de Cristo. Por isso, além de convidar cada um dos fiéis a encontrar
pessoalmente tempo para se demorar em oração, diante do Sacramento do altar, sinto o dever de
convidar as próprias paróquias e demais grupos eclesiais a promoverem momentos de adoração
comunitária. Obviamente, conservam todo o seu valor as formas já existentes de devoção
eucarística. Penso, por exemplo, nas procissões eucarísticas, sobretudo a tradicional procissão
na solenidade do Corpo de Deus, na devoção das Quarenta Horas, nos congressos eucarísticos
locais, nacionais e internacionais, e noutras iniciativas análogas. Devidamente actualizadas e
adaptadas às diversas circunstâncias, tais formas de devoção merecem ser cultivadas ainda
hoje.195
O lugar do sacrário na igreja
69. Ainda relacionado com a importância da reserva eucarística e da adoração e reverência
diante do Sacramento do sacrifício de Cristo, o Sínodo dos Bispos interrogou-se sobre a devida
colocação do sacrário, dentro das nossas igrejas.196 Com efeito, uma correcta localização do
mesmo ajuda a reconhecer a presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento; por isso, é
necessário que o lugar onde são conservadas as espécies eucarísticas seja fácil de individuar por
qualquer pessoa que entre na igreja, graças nomeadamente à lâmpada do Santíssimo
perenemente acesa. Tendo em vista tal objectivo, é preciso considerar a disposição
arquitectónica do edifício sagrado: nas igrejas, onde não existe a capela do Santíssimo
Sacramento mas perdura o altar-mor com o sacrário, convém continuar a valer-se de tal
estrutura para a conservação e adoração da Eucaristia, evitando porém colocar a cadeira do
celebrante na sua frente. Nas novas igrejas, bom seria predispor a capela do Santíssimo nas
proximidades do presbitério; onde isso não for possível, é preferível colocar o sacrário no
presbitério, em lugar suficientemente elevado, no centro do fecho absidal ou então noutro ponto
onde fique de igual modo bem visível. Estas precauções concorrem para conferir dignidade ao
sacrário que deve ser sempre cuidado, também sob o perfil artístico. Obviamente, é necessário
ter em conta também o que diz a propósito a Instrução Geral do Missal Romano.197 Em todo o
caso, o juízo último sobre esta matéria compete ao bispo diocesano.
III PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO
«Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, também aquele que Me come
viverá por Mim» (Jo 6,57)
FORMA EUCARÍSTICA DA VIDA CRISTÃ
O culto espiritual
70. O Senhor Jesus, que para nós se fez alimento de verdade e amor, falando do dom da sua
vida assegura-nos: «Quem comer deste pão viverá eternamente» (Jo 6,51). Mas, esta «vida
eterna» começa em nós, já agora, através da mudança que o dom eucarístico gera na nossa vida:
«Aquele que me come viverá por mim» (Jo 6,57). Estas palavras de Jesus permitem-nos
compreender que o mistério «acreditado» e «celebrado» possui em si mesmo um tal dinamismo,
que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã. De facto, comungando
o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, vamo-nos tornando participantes da vida divina de modo
sempre mais adulto e consciente. Vale aqui o mesmo que Santo Agostinho afirma a propósito
do Verbo (Logos) eterno, alimento da alma, quando, pondo em evidência o carácter paradoxal
deste alimento, o santo doutor imagina ouvi-lo dizer: «Sou o pão dos fortes; cresce e comer-meás.
Não me transformarás em ti como ao alimento da tua carne, mas mudar-te-ás em mim».198
Com efeito, não é o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que
acabamos misteriosamente mudados por ele. Cristo alimenta-nos, unindo-nos a si; «atrai-nos
para dentro de si».199
A celebração eucarística surge aqui em toda a sua força como fonte e ápice da existência
eclesial, enquanto exprime a origem e simultaneamente a realização do culto novo e definitivo,
o culto espiritual (logiké latreía).200 As palavras que encontramos sobre isto, na Carta de São
Paulo aos Romanos, são a formulação mais sintética do modo como a Eucaristia transforma
toda a nossa vida em culto espiritual agradável a Deus: «Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de
Deus, que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Tal é o
culto espiritual que lhe deveis prestar» (12,1). Nesta exortação, aparece a imagem do novo culto
como oferta total da própria pessoa em comunhão com toda a Igreja. A insistência do Apóstolo
sobre a oferta dos nossos corpos sublinha o concretismo humano dum culto de forma alguma
desencarnado. E, a propósito, o santo de Hipona lembra-nos que «este é o sacrifício dos cristãos,
ou seja, serem muitos e um só corpo em Cristo. A Igreja celebra este mistério através do
Sacramento do altar, que os fiéis bem conhecem e no qual se lhes mostra claramente que,
naquilo que se oferece, ela mesma é oferecida».201 De facto, a doutrina católica afirma que a
Eucaristia, enquanto sacrifício de Cristo, é também sacrifício da Igreja e, consequentemente, dos
fiéis.202 Esta insistência sobre o sacrifício – sacrum facere, «tornar sagrado» – exprime aqui
toda a densidade existencial que está implicada na transformação da nossa realidade humana
alcançada por Cristo (Fl 3,12).
Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico
71. O novo culto cristão engloba todos os aspectos da existência, transfigurando-a: «Quando
comeis ou bebeis, ou fazeis qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus» (1Cor 10,31).
Em cada acto da sua vida, o cristão é chamado a manifestar o verdadeiro culto a Deus; daqui
toma forma a natureza intrinsecamente eucarística da vida cristã. Uma vez que abraça a
realidade humana do crente em seu concretismo quotidiano, a Eucaristia torna possível dia após
dia a progressiva transfiguração do homem, por graça chamado a ser conforme à imagem do
Filho de Deus (Rm 8,29s). Nada há de autenticamente humano – pensamentos e afectos,
palavras e obras – que não encontre no sacramento da Eucaristia a forma adequada para ser
vivido em plenitude. Sobressai aqui todo o valor antropológico da novidade radical trazida por
Cristo com a Eucaristia: o culto a Deus na existência humana não pode ser relegado para um
momento particular e privado, mas tende, por sua natureza, a permear cada aspecto da realidade
do indivíduo. Assim, o culto agradável a Deus torna-se uma nova maneira de viver todas as
circunstâncias da existência, na qual cada particular fica exaltado porque vivido dentro do
relacionamento com Cristo e como oferta a Deus. A glória de Deus é o homem vivo (1Cor
10,31); e a vida do homem é a visão de Deus.203
Viver segundo o domingo
72. Esta novidade radical, que a Eucaristia introduz na vida do homem, revelou-se à consciência
cristã desde o princípio; prontamente os fiéis compreenderam a influência profunda que a
celebração eucarística exercia sobre o estilo da sua vida. Santo Inácio de Antioquia exprimia
esta verdade designando os cristãos como «aqueles que chegaram à nova esperança», e
apresentava-os como aqueles que vivem «segundo o domingo» (iuxta dominicam viventes).204
Esta expressão do grande mártir antioqueno põe claramente em evidência a ligação entre a
realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia. O costume característico que têm os
cristãos de se reunirem no primeiro dia depois do sábado, para celebrar a ressurreição de Cristo
– conforme a narração do mártir São Justino205 – é também o dado que define a forma da vida
renovada pelo encontro com Cristo. Mas, a expressão de Santo Inácio – «viver segundo o
domingo» – sublinha também o valor paradigmático que este dia santo tem para os restantes
dias da semana. De facto, o domingo não se distingue com base na simples suspensão das
actividades habituais, como se fosse uma espécie de parêntesis dentro do ritmo normal dos dias;
os cristãos sempre sentiram este dia como o primeiro da semana, porque nele se faz memória da
novidade radical trazida por Cristo. Por isso, o domingo é o dia em que o cristão reencontra a
forma eucarística própria da sua existência, segundo a qual é chamado a viver constantemente:
«viver segundo o domingo» significa viver consciente da libertação trazida por Cristo e realizar
a própria existência como oferta de si mesmo a Deus, para que a sua vitória se manifeste
plenamente a todos os homens através duma conduta intimamente renovada.
Viver o preceito dominical
73. Cientes deste princípio novo de vida que a Eucaristia deposita no cristão, os padres sinodais
reafirmaram a importância que tem, para todos os fiéis, o preceito dominical como fonte de
liberdade autêntica, a fim de poderem viver cada um dos outros dias segundo o que celebraram
no «dia do Senhor». Com efeito, a vida de fé corre perigo quando se deixa de sentir desejo de
participar na celebração eucarística em que se faz memória da vitória pascal. A participação na
assembleia litúrgica dominical, ao lado de todos os irmãos e irmãs com os quais se forma um só
Corpo em Cristo Jesus, é exigida pela consciência cristã e simultaneamente educa a consciência
cristã. Perder o sentido do domingo como dia do Senhor que deve ser santificado é sintoma
duma perda do sentido autêntico da liberdade cristã, a liberdade dos filhos de Deus.206
Continuam a ser preciosas as observações feitas a este respeito pelo meu venerado predecessor
João Paulo II, na Carta Apostólica Dies Domini,207 quando trata das diversas dimensões que o
domingo tem para os cristãos: é dies Domini, em referimento à obra da criação; dies Christi,
enquanto dia da nova criação e do dom do Espírito Santo que o Senhor Ressuscitado concede;
dies Ecclesiæ, como dia em que a comunidade cristã se reúne para a celebração; dies hominis,
porque dia de alegria, repouso e caridade fraterna.
Um tal dia aparece, assim, como festa primordial em que todo o fiel, no próprio ambiente onde
vive, se pode fazer arauto e guardião do sentido do tempo. Deste dia, com efeito, brota o sentido
cristão da existência e uma nova maneira de viver o tempo, as relações, o trabalho, a vida e a
morte. Por isso, é bom que, no dia do Senhor, as realidades eclesiais organizem, a partir da
celebração eucarística dominical, manifestações próprias da comunidade cristã: encontros de
amizade, iniciativas para a formação de crianças, jovens e adultos na fé, peregrinações, obras de
caridade e momentos variados de oração. Por causa destes valores tão importantes – embora
justamente a tarde de sábado a partir das primeiras Vésperas já pertença ao domingo, sendo
permitido cumprir nela o preceito dominical – é necessário recordar que é o domingo em si
mesmo que merece ser santificado, para que não acabe por ficar um dia «vazio de Deus».208
O sentido do repouso e do trabalho
74. É particularmente urgente no nosso tempo lembrar que o dia do Senhor é também o dia de
repouso do trabalho. Desejamos vivamente que isto mesmo seja reconhecido também pela
sociedade civil, de modo que se possa ficar livre das obrigações laborais sem ser penalizado por
isso. De facto, os cristãos – não sem relação com o significado do sábado na tradição hebraica –
viram no dia do Senhor também o dia de repouso da fadiga quotidiana. Isto possui um
significado bem preciso, ou seja, constitui uma relativização do trabalho, que tem por finalidade
o homem: o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. É fácil intuir a tutela que
isto oferece ao próprio homem, ficando assim emancipado duma possível forma de escravidão.
Como já tive ocasião de afirmar, «o trabalho reveste uma importância primária para a realização
do homem e o progresso da sociedade; por isso, torna-se necessário que aquele seja sempre
organizado e realizado no pleno respeito da dignidade humana e ao serviço do bem comum. Ao
mesmo tempo, é indispensável que o homem não se deixe escravizar pelo trabalho, que não o
idolatre pretendendo achar nele o sentido último e definitivo da vida».209 É no dia consagrado a
Deus que o homem compreende o sentido da sua existência e também do trabalho.210
Assembleias dominicais na ausência de sacerdote
75. Uma vez descoberto o significado da celebração dominical para a vida do cristão, coloca-se
espontaneamente o problema das comunidades cristãs onde falta o sacerdote e,
consequentemente, não é possível celebrar a Santa Missa no dia do Senhor. A tal respeito,
convém reconhecer que nos encontramos perante situações muito diversificadas entre si. Antes
de mais, o Sínodo recomendou aos fiéis que fossem a uma das igrejas da diocese onde está
garantida a presença do sacerdote, mesmo que isso lhes exija um pouco de sacrifício.211
Entretanto, nos casos em que se torne praticamente impossível a participação na Eucaristia
dominical, devido à grande distância, é importante que as comunidades cristãs se reúnam
igualmente para louvar o Senhor e fazer memória do dia a Ele dedicado. Mas isso deverá
verificar-se a partir duma conveniente instrução sobre a diferença entre a Santa Missa e as
assembleias dominicais à espera de sacerdote. A solicitude pastoral da Igreja há-de exprimir-se,
neste caso, vigiando que a liturgia da Palavra – organizada sob a guia dum diácono ou dum
responsável da comunidade a quem foi regularmente confiado este ministério pela autoridade
competente – se realize segundo um ritual específico elaborado pelas Conferências Episcopais e
para tal fim aprovado por elas.212 Lembro que compete aos Ordinários conceder a faculdade de
distribuir a comunhão nessas liturgias, ponderando atentamente a conveniência da escolha a
fazer. Além disso, tudo deve ser feito de forma que tais assembleias não criem confusão quanto
ao papel central do sacerdote e à dimensão sacramental na vida da Igreja. A importância da
função dos leigos, a quem justamente há que agradecer a generosidade ao serviço das
comunidades cristãs, jamais deve ofuscar o ministério insubstituível dos sacerdotes na vida da
Igreja.213 Por isso, vigie-se atentamente sobre as assembleias à espera de sacerdote para que
não dêem lugar a visões eclesiológicas incompatíveis com a verdade do Evangelho e a tradição
da Igreja; devem antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que mande
sacerdotes santos segundo o seu Coração. A propósito, vale a pena recordar aquilo que escreveu
o papa João Paulo II, na Carta aos Sacerdotes, por ocasião da Quinta-feira Santa de 1979,
recordando o caso comovente que se verificava em certos lugares onde as pessoas, privadas de
sacerdote pelo regime ditatorial, se reuniam numa igreja ou num santuário, colocavam sobre o
altar a estola que ainda conservavam e recitavam as orações da liturgia eucarística até ao
«momento que corresponderia à transubstanciação» e aí se detinham em silêncio, dando
testemunho de quão «ardentemente desejavam ouvir aquelas palavras que só os lábios dum
sacerdote podiam eficazmente pronunciar».214 Precisamente nesta perspectiva, considerando o
bem incomparável que deriva da celebração do sacrifício eucarístico, peço a todos os sacerdotes
uma efectiva e concreta disponibilidade para visitarem, com a maior assiduidade possível, as
comunidades que estão confiadas ao seu cuidado pastoral, a fim de não ficarem demasiado
tempo sem o sacramento da caridade.
UMA FORMA EUCARÍSTICA DA EXISTÊNCIA CRISTÃ, A PERTENÇA ECLESIAL
76. A importância do domingo como dia da Igreja (dies Ecclesiæ) traz-nos à mente a relação
intrínseca entre a vitória de Jesus sobre o mal e a morte, e a nossa pertença ao seu corpo
eclesial; no dia do Senhor, com efeito, todo o cristão reencontra também a dimensão
comunitária da sua existência redimida. Participar na acção litúrgica, comungar o Corpo e o
Sangue de Cristo significa, ao mesmo tempo, tornar cada vez mais íntima e profunda a própria
pertença àquele que morreu por nós (1Cor 6,19s; 7,23). Verdadeiramente, quem se nutre de
Cristo, vive por Ele. Compreende-se o sentido profundo da comunhão dos santos (communio
sanctorum), relacionando-a com o mistério eucarístico. A comunhão tem sempre e
inseparavelmente uma conotação vertical e uma horizontal: comunhão com Deus e comunhão
com os irmãos e irmãs. Estas duas dimensões encontram-se misteriosamente no dom
eucarístico. «Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão com o Pai, com o Filho e
com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão entre nós. E onde a
comunhão entre nós não for vivida, também a comunhão com o Deus-Trindade não é viva nem
verdadeira».215 Chamados, pois, a ser membros de Cristo e consequentemente membros uns
dos outros (1Cor 12,27), constituímos uma realidade ontologicamente fundada no Baptismo e
alimentada pela Eucaristia, realidade essa que exige ter expressão sensível na vida das nossas
comunidades.
A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária. Através da diocese e
das paróquias, enquanto estruturas basilares da Igreja num território particular, cada fiel pode
fazer experiência concreta da sua pertença ao Corpo de Cristo. As associações, os movimentos
eclesiais e novas comunidades – com a vivacidade dos carismas que lhes foram concedidos pelo
Espírito Santo para o nosso tempo – bem como os institutos de vida consagrada têm a missão de
oferecer a sua contribuição específica para favorecer nos fiéis a percepção desta sua pertença ao
Senhor (Rm 14,8). O fenómeno da secularização, que apresenta – não por acaso – traços
fortemente individualistas, logra seus efeitos deletérios sobretudo nas pessoas que se isolam por
escasso sentido de pertença. Desde os seus inícios, sempre o Cristianismo implica uma
companhia, uma trama de relações continuamente vivificadas pela escuta da Palavra e pela
celebração eucarística e animadas pelo Espírito Santo.
Espiritualidade e cultura eucarística
77. Os padres sinodais afirmaram, significativamente, que «os fiéis cristãos precisam duma
compreensão mais profunda das relações entre a Eucaristia e a vida quotidiana. A
espiritualidade eucarística não é apenas participação na Missa e devoção ao Santíssimo
Sacramento; mas abraça a vida inteira».216 Um tal realce assume actualmente particular
significado para todos nós; é preciso reconhecer que um dos efeitos mais graves da
secularização, há pouco mencionada, é ter relegado a fé cristã para a margem da existência,
como se fosse inútil para a realização concreta da vida dos homens; a falência desta maneira de
viver «como se Deus não existisse» está agora patente a todos. Hoje torna-se necessário
redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples convicção privada ou uma doutrina abstracta,
mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida de todos. Por isso, a
Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve traduzir-se em
espiritualidade, em vida «segundo o Espírito» (Rm 8,4s; cf. Gl 5,16.25). É significativo que São
Paulo, na passagem da Carta aos Romanos onde convida a viver o novo culto espiritual, apele
ao mesmo tempo para a necessidade de mudar a própria forma de viver e pensar: «Não vos
conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para saberdes
discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito»
(12,2). Deste modo, o Apóstolo das Gentes põe em evidência a ligação entre o verdadeiro culto
espiritual e a necessidade duma nova maneira de compreender a existência e orientar a vida.
Constitui parte integrante da forma eucarística da vida cristã a renovação da mentalidade, pois
«assim já não seremos crianças inconstantes, levadas ao sabor de todo o vento de doutrina» (Ef
4,14).
Eucaristia e evangelização das culturas
78. Daquilo que ficou dito, segue-se que o mistério eucarístico nos põe em diálogo com as
várias culturas, mas de certa forma também as desafia.217 É preciso reconhecer o carácter
intercultural deste novo culto, desta logiké latreía: a presença de Jesus Cristo e a efusão do
Espírito Santo são acontecimentos que podem encontrar-se de forma duradoura com qualquer
realidade cultural a fim de a fermentar evangelicamente. Em consequência disto mesmo, temos
a obrigação de promover convictamente a evangelização das culturas, na certeza de que o
próprio Cristo é a verdade de todo o homem e da história humana inteira. A Eucaristia torna-se
critério de valorização de tudo o que o cristão encontra nas diversas expressões culturais; num
processo importante como este, podem revelar-se de grande significado as palavras de São
Paulo quando, na sua I Carta aos Tessalonicenses, convida a «avaliar tudo e conservar o que for
bom» (5,21).
Eucaristia e fiéis leigos
79. Em Cristo, cabeça da Igreja seu corpo, todos os cristãos formam uma «raça eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os louvores d’Aquele que
os chamou das trevas à sua luz admirável» (1Ped 2,9). A Eucaristia, enquanto mistério a ser
vivido, oferece-se a cada um de nós na condição concreta em que nos encontramos, fazendo
com que esta mesma situação vital se torne um lugar onde viver diariamente a novidade cristã.
Se o sacrifício eucarístico alimenta e faz crescer em nós tudo o que já nos foi dado no Baptismo,
pelo qual todos somos chamados à santidade,218 então, isso deve transparecer e manifestar-se
precisamente nas situações ou estados de vida em que cada cristão se encontra; tornamo-nos dia
após dia culto agradável a Deus, vivendo a própria vida como vocação. O próprio sacramento da
Eucaristia, a partir da convocação litúrgica, compromete-nos na realidade quotidiana a fim de
que tudo seja feito para glória de Deus. E, dado que o mundo é «o campo» (Mt 13,38) onde
Deus coloca os seus filhos como boa semente, os cristãos leigos, em virtude do Baptismo e da
Confirmação e corroborados pela Eucaristia, são chamados a viver a novidade radical trazida
por Cristo precisamente no meio das condições normais da vida; 219 devem cultivar o desejo de
ver a Eucaristia influir cada vez mais profundamente na sua existência quotidiana, levando-os a
serem testemunhas reconhecidas como tais no próprio ambiente de trabalho e na sociedade
inteira.220 Dirijo um particular encorajamento às famílias a haurirem inspiração e força deste
sacramento: o amor entre o homem e a mulher, o acolhimento da vida, a missão educadora
aparecem como âmbitos privilegiados onde a Eucaristia pode mostrar a sua capacidade de
transformar e encher de significado a existência.221 Os pastores nunca deixem de apoiar,
educar e encorajar os fiéis leigos a viverem plenamente a própria vocação à santidade no meio
deste mundo que Deus amou até ao ponto de dar o Filho para sua salvação (Jo 3,16).
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal
80. A forma eucarística da existência cristã manifesta-se, sem dúvida, de modo particular no
estado de vida sacerdotal. A espiritualidade sacerdotal é intrinsecamente eucarística; a semente
desta espiritualidade encontra-se já nas palavras que o Bispo pronuncia na liturgia da ordenação:
«Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma consciência do que virás a
fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor».222
Para conferir à sua existência uma forma eucarística cada vez mais perfeita, o sacerdote deve
reservar, já no período de formação e depois nos anos sucessivos, amplo espaço para a vida
espiritual.223 É chamado a ser continuamente um autêntico perscrutador de Deus, embora ao
mesmo tempo permaneça solidário com as preocupações dos homens. Uma vida espiritual
intensa permitir-lhe-á entrar mais profundamente em comunhão com o Senhor e ajudá-lo-á a
deixar-se possuir pelo amor de Deus, tornando-se sua testemunha em todas as circunstâncias
mesmo difíceis e obscuras. Para isso, juntamente com os padres do Sínodo, recomendo aos
sacerdotes «a celebração diária da Santa Missa, mesmo quando não houver participação de
fiéis».224 Tal recomendação é ditada, antes de mais, pelo valor objectivamente infinito de cada
celebração eucarística; e é motivada ainda pela sua singular eficácia espiritual, porque, se vivida
com atenção e fé, a Santa Missa é formadora no sentido mais profundo do termo, enquanto
promove a configuração a Cristo e reforça o sacerdote na sua vocação.
Eucaristia e vida consagrada
81. No contexto da relação entre a Eucaristia e as diversas vocações eclesiais, refulge de modo
particular «o testemunho profético de mulheres e homens consagrados que encontram, na
celebração eucarística e na adoração, a força para o seguimento radical de Cristo obediente,
pobre e casto».225 Embora realizem muitos serviços no campo da formação humana e do
cuidado pelos pobres, no ensino ou na assistência aos doentes, os consagrados e consagradas
sabem que a finalidade principal da sua vida é «a contemplação das coisas divinas e a união
assídua com Deus»; 226 a contribuição essencial que a Igreja espera da vida consagrada destinase
muito mais ao ser do que ao fazer. Neste contexto, queria evocar a importância do
testemunho virginal precisamente em relação ao mistério da Eucaristia; com efeito, além da
ligação com o celibato sacerdotal, o mistério eucarístico apresenta uma relação intrínseca com a
virgindade consagrada, enquanto esta é expressão da dedicação exclusiva da Igreja a Cristo, que
ela acolhe como seu Esposo com radical e fecunda fidelidade.227 Na Eucaristia, a virgindade
consagrada encontra inspiração e nutrimento para a sua dedicação total a Cristo; além disso,
aufere da Eucaristia conforto e impulso para ser, no nosso tempo também, sinal do amor
gratuito e fecundo que Deus tem pela humanidade. Enfim, é através do seu testemunho
específico que a vida consagrada se torna objectivamente apelo e antecipação daquelas «núpcias
do Cordeiro» (Ap 19,7-9) que constituem a meta de toda a história da salvação; neste sentido,
aquela constitui uma evocação eficaz do horizonte escatológico de que o homem necessita para
poder orientar as suas opções e resoluções de vida.
Eucaristia e transformação moral
82. Descoberta a beleza da forma eucarística da existência cristã, somos levados a reflectir
também sobre as energias morais que, por tal forma, se desencadeiam em apoio da liberdade
autêntica e própria dos filhos de Deus. Desejo, assim, retomar um assunto que surgiu no Sínodo:
a ligação entre forma eucarística da vida e transformação moral. O papa João Paulo II afirmara
que a vida moral «possui o valor de um “culto espiritual” (Rm 12,1; cf. Fl 3,3), que brota e se
alimenta daquela fonte inesgotável de santidade e glorificação de Deus que são os sacramentos,
especialmente a Eucaristia: com efeito, ao participar no sacrifício da cruz, o cristão comunga do
amor de doação de Cristo, ficando habilitado e comprometido a viver esta mesma caridade em
todas as suas atitudes e comportamentos de vida».228 Em suma, «no próprio “culto”, na
comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar por sua vez os outros. Uma Eucaristia
que não se traduza em amor concretamente vivido é em si mesma fragmentária».229 Este apelo
ao valor moral do culto espiritual não deve ser interpretado em chave moralista; é, antes de
mais, a descoberta feliz do dinamismo do amor no coração de quem acolhe o dom do Senhor,
abandona-se a Ele e encontra a verdadeira liberdade. A transformação moral, que o novo culto
instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer corresponder ao
amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da própria fragilidade. Aquilo de
que estamos a falar aparece claramente no relato evangélico de Zaqueu (Lc 19,1-10): depois de
ter hospedado Jesus na sua casa, o publicano sente-se completamente transformado; decide dar
metade dos seus haveres aos pobres e restituir quatro vezes mais a quem roubou. A tensão
moral, que nasce do acto de hospedar Jesus na nossa vida, brota da gratidão por se ter
experimentado a imerecida proximidade do Senhor.
Coerência eucarística
83. É importante salientar aquilo que os padres sinodais designaram por coerência eucarística, à
qual está objectivamente chamada a nossa existência. Com efeito, o culto agradável a Deus
nunca é um acto meramente privado, sem consequências nas nossas relações sociais: requer o
testemunho público da própria fé. Evidentemente, isto vale para todos os baptizados, mas
impõe-se com particular premência a quantos, pela posição social ou política que ocupam,
devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e defesa da vida humana
desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio, entre um homem
e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as
suas formas.230 Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua grave
responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem sentir-se particularmente
interpelados pela sua consciência rectamente formada a apresentar e apoiar leis inspiradas nos
valores impressos na natureza humana.231 Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a
Eucaristia (1Cor 11,27-29). Os bispos são obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte
da sua responsabilidade pelo rebanho que lhes foi confiado.232
EUCARISTIA, MISTÉRIO ANUNCIADO
Eucaristia e missão
84. Na homilia, durante a celebração eucarística com que solenemente dei início ao meu
ministério na Cátedra de Pedro, disse: «Não há nada de mais belo do que ser alcançado,
surpreendido pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-lo e
comunicar aos outros a amizade com Ele».233 Esta afirmação cresce de intensidade, quando
pensamos no mistério eucarístico; com efeito, não podemos reservar para nós o amor que
celebramos neste sacramento: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de
que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar nele. Por
isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: «Uma
Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária».234 Havemos, também nós, de
poder dizer com convicção aos nossos irmãos: «Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos,
para que estejais também em comunhão connosco» (1Jo 1,2-3). Verdadeiramente, não há nada
de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo a todos! Aliás, a própria instituição da
Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para
a redenção do mundo (Jo 3,16-17; Rm 8,32). Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos
o sacramento que actualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de si mesmo pela
salvação de todos nós. Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar
pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os
homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência
cristã.
Eucaristia e testemunho
85. A missão primeira e fundamental, que deriva dos santos mistérios celebrados, é dar
testemunho com a nossa vida. O enlevo pelo dom que Deus nos concedeu em Cristo, imprime à
nossa existência um dinamismo novo que nos compromete a ser testemunhas do seu amor.
Tornamo-nos testemunhas quando, através das nossas acções, palavras e modo de ser, é Outro
que aparece e se comunica. Pode-se afirmar que o testemunho é o meio pelo qual a verdade do
amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente esta novidade
radical. No testemunho, Deus expõe-se, por assim dizer, ao risco da liberdade do homem. O
próprio Jesus é a testemunha fiel e verdadeira (Ap 1,5; 3,14); veio para dar testemunho da
verdade (Jo 18,37). Nesta ordem de ideias, apraz-me retomar um conceito caro aos primeiros
cristãos mas que nos interpela também a nós, cristãos de hoje: o testemunho até ao dom de si
mesmo, até ao martírio, sempre foi considerado, na história da Igreja, o apogeu do novo culto
espiritual: «Oferecei os vossos corpos» (Rm 12,1). Pense-se, por exemplo, na narração do
martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João: o seu caso, dramático, é todo ele
descrito como uma liturgia; mais ainda, como se o próprio mártir se tornasse Eucaristia.235
Pensemos também na consciência eucarística que Inácio de Antioquia exprime tendo em mente
o seu martírio: considera-se «trigo de Deus» e, pelo martírio, deseja transformar-se em «pão
puro de Cristo».236 O cristão, quando oferece a sua vida no martírio, entra em plena comunhão
com a Páscoa de Jesus Cristo e, assim, ele mesmo se torna Eucaristia com Cristo. Não faltam,
ainda hoje, à Igreja, os mártires, nos quais se manifesta de modo supremo o amor de Deus. E,
mesmo que não nos seja pedida a prova do martírio, sabemos, porém, que o culto agradável a
Deus postula intimamente esta disponibilidade 237 e encontra a sua realização no feliz e
convicto testemunho perante o mundo duma vida cristã coerente, nos diversos sectores onde o
Senhor nos chama a anunciá-lo.
Jesus Cristo, único Salvador
86. Sublinhar a ligação intrínseca entre Eucaristia e missão faz-nos descobrir também o
conteúdo supremo do nosso anúncio. Quanto mais vivo for o amor pela Eucaristia, no coração
do povo cristão, tanto mais clara lhe será a incumbência da missão: levar Cristo; não meramente
uma ideia ou uma ética nele inspirada, mas o dom da sua própria Pessoa. Quem não comunica a
verdade do Amor ao irmão, ainda não deu bastante. A Eucaristia, enquanto sacramento da nossa
salvação, chama-nos assim, inevitavelmente, à unicidade de Cristo e da salvação por Ele
realizada a preço do seu sangue. Por isso, do mistério eucarístico acreditado e celebrado nasce a
exigência de educar constantemente a todos para o trabalho missionário, cujo centro é o anúncio
de Jesus, único Salvador.238 Isto impedirá de confinar, em chave meramente sociológica, a
obra decisiva de promoção humana que todo o processo de evangelização autêntico sempre
implica.
Liberdade de culto
87. Neste contexto, desejo dar voz àquilo que os padres referiram, durante a Assembleia sinodal,
a propósito das graves dificuldades criadas à missão das comunidades cristãs que vivem em
condições de minoria ou mesmo de privação da liberdade religiosa.239 Devemos
verdadeiramente dar graças ao Senhor por todos os bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e
leigos que se prodigalizam a anunciar o Evangelho e vivem a sua fé sob risco da própria vida.
Não são poucas as regiões do mundo onde o simples acto de ir à igreja constitui um testemunho
heróico que expõe a vida da pessoa à marginalização e à violência. Nesta ocasião, quero
também reiterar a solidariedade da Igreja inteira a quantos sofrem por falta de liberdade de
culto. Nos lugares onde não há a liberdade religiosa, sabemos que falta, no fim de contas, a
liberdade mais significativa, pois é na fé que o homem exprime a decisão íntima relativa ao
sentido último da própria existência; por isso, rezemos para que se alargue o espaço da liberdade
religiosa em todos os Estados, a fim de os cristãos e os membros das outras religiões poderem
livremente viver as suas convicções, pessoalmente e em comunidade.
EUCARISTIA, MISTÉRIO OFERECIDO AO MUNDO
Eucaristia, Pão repartido para a vida do mundo
88. «O Pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo» (Jo 6,51). Com
estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os
homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa.
Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus para com as
pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20,34; Mc 6,34; Lc 19,41). Ele exprime,
através dum sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus que deseja que
todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística actualiza
sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo
inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus
por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o serviço da caridade para
com o próximo, que «consiste precisamente no facto de eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa
que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do
encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo
a tocar o sentimento. Então, aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e
sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo».240 Desta forma, nas pessoas que
contacto, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os «até ao
fim» (Jo 13,1). Por conseguinte, as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem
consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia
impele todo o que acredita nele a fazer-se «pão repartido» para os outros e, consequentemente, a
empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e
dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a
empenharem-se pessoalmente: «Dai-lhes vós de comer» (Mt 14,16). Na verdade, a vocação de
cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo.
As implicações sociais do mistério eucarístico
89. A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade de
relações sociais: «a “mística” do sacramento tem um carácter social, porque (…) a união com
Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele se entrega. Eu não posso ter
Cristo só para mim; posso pertencer-lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou hãode
tornar seus».241 A propósito, é necessário explicitar a relação entre mistério eucarístico e
compromisso social. A Eucaristia é sacramento de comunhão entre irmãos e irmãs que aceitam
reconciliar-se em Cristo, o qual fez de judeus e gentios um só povo, destruindo o muro de
inimizade que os separava (Ef 2,14). Somente esta tensão constante à reconciliação permite
comungar dignamente o Corpo e o Sangue de Cristo (Mt 5,23-24).242 Através do memorial do
seu sacrifício, Ele reforça a comunhão entre os irmãos e, de modo particular, estimula os que
estão em conflito a apressar a sua reconciliação, abrindo-se ao diálogo e ao compromisso em
prol da justiça. A restauração da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma,
condições para construir uma verdadeira paz; 243 desta consciência nasce a vontade de
transformar também as estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do
homem, criado à imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta
responsabilidade que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração. Como já tive
ocasião de afirmar, não é missão própria da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se
realizar a sociedade mais justa possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem da luta
pela justiça. A Igreja «deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as
forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá
afirmar-se nem prosperar».244 Na perspectiva da responsabilidade social de todos os cristãos,
os padres sinodais lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de libertação que nos
interpela e provoca continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos os fiéis para que se tornem
realmente obreiros de paz e justiça: «Com efeito, quem participa na Eucaristia deve empenharse
na edificação da paz neste nosso mundo marcado por muitas violências e guerras, e, hoje de
modo particular, pelo terrorismo, a corrupção económica e a exploração sexual»; 245
problemas, estes, que geram por sua vez outros fenómenos degradantes que causam viva
preocupação. Sabemos que estas situações não podem ser encaradas de modo superficial.
Precisamente, em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que
estão em contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu sangue,
afirmando assim o alto valor de cada pessoa.
O alimento da verdade e a indigência do homem
90. Não podemos ficar inactivos perante certos processos de globalização, que não raro fazem
crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar
quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao Céu (Tg 5,4). Por
exemplo, é impossível calar diante das «imagens impressionantes dos grandes campos de
deslocados ou refugiados – em várias partes do mundo – amontoados em condições precárias
para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes seres humanos não são nossos
irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os mesmos legítimos anseios de
felicidade que os outros?»246 O Senhor Jesus, pão de vida eterna, incita a tornarmo-nos atentos
às situações de indigência em que ainda vive grande parte da humanidade: são situações cuja
causa se fica a dever, frequentemente, a uma clara e preocupante responsabilidade dos homens.
De facto, «com base em dados estatísticos disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de
metade das somas imensas globalmente destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da
indigência o exército ilimitado dos pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações
que vivem sob o limiar da pobreza, mais por causa de situações que dependem das relações
internacionais políticas, comerciais e culturais do que por circunstâncias incontroláveis, o nosso
esforço comum verdadeiramente pode e deve oferecer-lhes nova esperança».247 O alimento da
verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de
alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar
sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos tiveram a
preocupação de partilhar os seus bens (Act 4,32) e de ajudar os pobres (Rm 15,26). O peditório
que se realiza nas assembleias litúrgicas constitui viva reminiscência disso mesmo, mas é
também uma necessidade muito actual. As instituições eclesiais de beneficência, de modo
particular a Caritas nos seus vários níveis, realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em
necessidade, sobretudo os mais pobres. Tirando inspiração da Eucaristia, que é o sacramento da
caridade, aquelas tornam-se a sua expressão concreta; por isso, merecem todo o aplauso e
estímulo pelo seu empenho solidário no mundo.
A doutrina social da Igreja
91. O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um compromisso corajoso nas
estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte
inexaurível no dom de Deus. O pedido que repetimos em cada Missa: «O pão nosso de cada dia
nos dai hoje», obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições
internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo
da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias
de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado na escola da Eucaristia, é
chamado a assumir directamente a sua responsabilidade político-social; a fim de poder
desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo através duma educação
concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi pedido pelo Sínodo, é necessário que,
nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e incremente a doutrina social da
Igreja.248 Neste precioso património, nascido da mais antiga tradição eclesial, encontramos os
elementos que orientam, com profunda sabedoria, o comportamento dos cristãos nas questões
sociais em ebulição. Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se
pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.
Santificação do mundo e defesa da criação
92. Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir
significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por
meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à
santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim.249 A própria Eucaristia
projecta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva
sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de
sinal, pelo qual Deus se comunica a si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a forma
eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de
mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto nos educa a própria
liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos dons, dirige a Deus uma oração de
bênção e súplica a respeito do pão e do vinho, «fruto da terra», «da videira» e do «trabalho do
homem». Com estas palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a actividade e
canseira humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz quanto
precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de mera matéria a
ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas coloca-se dentro do desígnio
amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos chamados a ser filhos e filhas de Deus no
seu único Filho, Jesus Cristo (Ef 1,4-12). As condições ecológicas em que a criação subjaz em
muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na
perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar responsavelmente na
defesa da criação; 250 de facto, na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a
unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a
«nova criação» que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já
agora em virtude do Baptismo (Cl 2,12s), abrindo-se assim à nossa vida cristã, alimentada pela
Eucaristia, a perspectiva do mundo novo, do novo céu e da nova terra, onde a nova Jerusalém
desce do Céu, de junto de Deus, «bela como noiva adornada para o seu esposo» (Ap 21,2).
Utilidade dum Compêndio Eucarístico
93. No termo destas reflexões em que, de boa vontade, me detive sobre as indicações surgidas
no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os padres apresentaram para ajudar o povo
cristão a crer, celebrar e viver cada vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos Dicastérios
competentes, há-de ser publicado um Compêndio, que recolha textos do Catecismo da Igreja
Católica, orações, explicações das Orações Eucarísticas do Missal e tudo o mais que possa
demonstrar-se útil para a correcta compreensão, celebração e adoração do Sacramento do
altar.251 Espero que este instrumento possa contribuir para que o memorial da Páscoa do
Senhor se torne, cada dia sempre mais, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja; isto animará
cada fiel a fazer da sua própria vida um verdadeiro culto espiritual.
CONCLUSÃO
94. Amados irmãos e irmãs, a Eucaristia está na origem de toda a forma de santidade, sendo
cada um de nós chamado à plenitude de vida no Espírito Santo. Quantos santos tornaram
autêntica a própria vida, graças à sua piedade eucarística! De Santo Inácio de Antioquia a Santo
Agostinho, de Santo Antão Abade a São Bento, de São Francisco de Assis a São Tomás de
Aquino, de Santa Clara de Assis a Santa Catarina de Sena, de São Pascoal Bailão a São Pedro
Julião Eymard, de Santo Afonso Maria de Ligório ao Beato Carlos de Foucauld, de São João
Maria Vianey a Santa Teresa de Lisieux, de São Pio de Pietrelcina à Beata Teresa de Calcutá,
do Beato Pedro Jorge Frassati ao Beato Ivan Mertz, para mencionar apenas alguns de tantos
nomes, a santidade sempre encontrou o seu centro no sacramento da Eucaristia. Por isso, é
necessário que, na Igreja, este mistério santíssimo seja verdadeiramente acreditado,
devotamente celebrado e intensamente vivido. A doação que Jesus faz de si mesmo no
sacramento memorial da sua paixão, atesta que o êxito da nossa vida está na participação da
vida trinitária, que nos é oferecida nele, de forma definitiva e eficaz. A celebração e a adoração
da Eucaristia permitem abeirar-nos do amor de Deus e a ele aderir pessoalmente até à união com
o bem-amado Senhor. A oferta da nossa vida, a comunhão com a comunidade inteira dos
crentes e a solidariedade com todo o homem são aspectos imprescindíveis da logiké latreía, ou
seja, do culto espiritual, santo e agradável a Deus (Rm 12,1), no qual toda a nossa realidade
humana concreta é transformada para glória de Deus. Convido, pois, todos os pastores a
prestarem a máxima atenção à promoção duma espiritualidade cristã autenticamente eucarística.
Os presbíteros, os diáconos e todos aqueles que exercem um ministério eucarístico possam
sempre tirar destes mesmos serviços, realizados com solicitude e constante preparação, força e
estímulo para o seu caminho pessoal e comunitário de santificação. Exorto todos os leigos, e as
famílias em particular, a encontrarem continuamente no Sacramento do Amor de Cristo a
energia de que precisam para transformar a própria vida num sinal autêntico da presença do
Senhor ressuscitado. Peço a todos os consagrados e consagradas para manifestarem, com a
própria existência eucarística, o esplendor e a beleza de pertencer totalmente ao Senhor.
95. No início do século IV, quando o culto cristão era ainda proibido pelas autoridades
imperiais, alguns cristãos do Norte de África, que se sentiam obrigados a celebrar o dia do
Senhor, desafiaram tal proibição. Foram martirizados enquanto declaravam que não lhes era
possível viver sem a Eucaristia, alimento do Senhor: «Sine dominico non possumus – sem o
domingo, não podemos viver».252 Estes mártires de Abitinas, juntamente com muitos outros
santos e beatos que fizeram da Eucaristia o centro da sua vida, intercedam por nós e nos
ensinem a fidelidade ao encontro com Cristo ressuscitado! Também nós não podemos viver sem
participar no sacramento da nossa salvação e desejamos ser iuxta dominicam viventes, isto é,
traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor. Com efeito, este é o dia da nossa libertação
definitiva. Então, porquê maravilhar-se quando desejamos que cada dia seja vivido segundo a
novidade introduzida por Cristo com o mistério da Eucaristia?
96. Que Maria Santíssima, Virgem Imaculada, arca da nova e eterna Aliança, nos acompanhe
neste caminho ao encontro do Senhor que vem! Nela encontramos realizada, na forma mais
perfeita, a essência da Igreja. Esta vê em Maria, «Mulher eucarística» – como a designou o
servo de Deus João Paulo II 253 –, o seu ícone melhor conseguido e contempla-a como modelo
insubstituível de vida eucarística. Por isso, na presença do «verum corpus natum de Maria
Virgine – verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria» sobre o altar, o sacerdote, em nome da
assembleia litúrgica, proclama com as palavras do cânone: «Veneramos a memória da gloriosa
sempre Virgem Maria, Mãe do nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo».254 O seu nome santo é
invocado e venerado também nos cânones das tradições orientais cristãs. Por sua vez, os fiéis
«recomendam a Maria, Mãe da Igreja, a sua existência e trabalho. Esforçando-se por ter os
mesmos sentimentos que Maria, ajudam toda a comunidade a viver em oferta viva, agradável ao
Pai».255 Ela é a Tota Pulchra, a Toda Formosa, porque nela resplandece o fulgor da glória de
Deus. A beleza da liturgia celeste, que deve reflectir-se também nas nossas assembleias,
encontra nela um espelho fiel. Dela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas e
eclesiais para podermos também nós apresentar-nos, segundo a palavra de São Paulo,
«imaculados» perante o Senhor, tal como Ele nos quis desde o princípio (Cl 1,22; Ef 1,4).256
97. Por intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, o Espírito Santo acenda em nós o mesmo
ardor que experimentaram os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) e renove na nossa vida o
enlevo eucarístico pelo esplendor e a beleza que refulgem no rito litúrgico, sinal eficaz da
própria beleza infinita do mistério santo de Deus. Os referidos discípulos levantaram-se e
voltaram a toda a pressa para Jerusalém a fim de partilhar a alegria com os irmãos e irmãs na fé.
Com efeito, a verdadeira alegria é reconhecer que o Senhor permanece no nosso meio,
companheiro fiel do nosso caminho; a Eucaristia faz-nos descobrir que Cristo, morto e
ressuscitado, se manifesta como nosso contemporâneo no mistério da Igreja, seu Corpo. Deste
mistério de amor fomos feitos testemunhas. Os votos que reciprocamente formulamos sejam os
de irmos cheios de alegria e maravilha ao encontro da Santíssima Eucaristia, para experimentar
e anunciar aos outros a verdade das palavras com que Jesus se despediu dos seus discípulos:
«Eu estou sempre convosco, até ao fim dos tempos» (Mt 28,20).
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Fevereiro – festa da Cátedra de São Pedro –
de 2007, segundo ano de Pontificado